quinta-feira, maio 25, 2017

PUBLICAR MIA COUTO É SEMPRE UM PRIVILÉGIO...



MUDANÇA  DE IDADE


Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.


MIA COUTO.
in “Tradutor de chuvas”





Mia Couto
Mia Couto (1955), pseudónimo de António Emílio Leite Couto, nasceu na cidade da Beira, em Moçambique, África, no dia 5 de julho de 1955. Filho de Fernando Couto, emigrante português, jornalista e poeta que pertencia aos círculos intelectuais de sua cidade. Com 14 anos, Mia Couto publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira. Em 1971 deixou a cidade da Beira e foi para a capital Lourenço Marques, hoje Maputo, para ingressar no curso de Medicina, que não chegou a concluir. 
A partir de 1974 passou a trabalhar como jornalista na Tribuna e no Jornal de Notícias. Em 1976, com a independência de Moçambique, tornou-se repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique. Foi jornalista da revista semanal Tempo, entre 1979 e 1981. Em 1983, publicou o seu primeiro livro de poesias “Raízes de Orvalho”. Em 1985, abandona a carreira de jornalista e ingressa no curso de Biologia, na Universidade de Eduardo Mondlane, na especialidade de Ecologia.

Em 1992, Mia Couto publicou “Terra Sonâmbula”, o seu primeiro romance, escrito em prosa poética, onde compõe uma bela fábula passada no Moçambique pós-independência, mergulhado na devastadora guerra civil que se estendeu por dez anos. Em 1995, a obra ganhou o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos. O livro foi considerado por um júri especial da Feira do Livro de Zimbabwe, um dos melhores doze livros africanos do século XX.
Mia Couto escreve poesias, contos, romances e crónicas. Entre as suas obras destacam-se: “Cada Homem é Uma Raça” (1990), “Cronicando” (1991), “Raízes de Orvalho e Outros Poemas” (1999), “Mar Me Quer” (2000), “Um Rio Chamado Tempo” (2002), “O Fio das Missangas” (2003), “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” (2008), “Tradutor de Chuvas” (2011), “A Confissão da Leoa” (2012) e “Mulheres de Cinza” (2015).

Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado além-fronteiras e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. Recebeu inúmeros prémios nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto da obra literária, entre eles contam-se: Prémio Vergílio Ferreira (1999), pelo conjunto da obra, Prémio União Latina de Literaturas Românicas (2007) e Prémio Camões (2013). 
É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, para a cadeira nº 5.
Como Biólogo, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca, em 1992. Realiza trabalhos de pesquisa em diversas áreas, especialmente em áreas costeiras. É diretor da empresa “Impacto”, que realiza avaliações de impacto ambiental. É professor da cadeira de Ecologia em diversas faculdades da Universidade Eduardo Mondlane.



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