O SONETO ENCONTRADO NA
GARRAFA
é a ti que eu quero nesta
ilha deserta:
livro nenhum, quadro
nenhum, nem disco
(gosto de tanta coisa
que faísco
mas a escolher assim
nunca se acerta).
quero trazer-te a ti,
ágil, desperta,
despenteadamente a cada
risco,
e viver de algas,
peixes e marisco
e nunca mais fazer sinais
de alerta
e os navios ao longe
ver passar,
enquanto a roupa seca
na palmeira
(esta ilha tem uma, de
maneira
que não é só rochedo e
à roda o mar).
e tu entre corais,
náufraga e nua,
a boiar no meu peito à
luz da lua.
a consistência das
sombras
é esta a consistência
das sombras.
a sombra do teu cabelo
a modelar-te a cara,
como a das palmas
das minhas mãos.
a sombra da casa e das
árvores
na longa anamorfose
das horas sob a luz.
a sombra de um voo,
rápida, a atravessar
o solo de areão grosso.
a sombra de uma arcada
estirando-se em pintura
inquieta e metafísica.
mas a sombra de uma
voz,
a de um lamento,
a de um olhar,
a de uma dúvida,
são da matéria da
metáfora
e da sonoridade do
tempo,
são representações
que dão outro sentido
à melancolia, aos vãos
que há
entre as pregas do
mundo,
dos sentimentos, da
razão.
VASCO GRAÇA MOURA
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