domingo, maio 28, 2017

PELA NOITE, COM VASCO GRAÇA MOURA: " O SONETO ENCONTRADO NA GARRAFA"




O SONETO ENCONTRADO NA GARRAFA


é a ti que eu quero nesta ilha deserta:
livro nenhum, quadro nenhum, nem disco
(gosto de tanta coisa que faísco
mas a escolher assim nunca se acerta).

quero trazer-te a ti, ágil, desperta,
despenteadamente a cada risco,
e viver de algas, peixes e marisco
e nunca mais fazer sinais de alerta

e os navios ao longe ver passar,
enquanto a roupa seca na palmeira
(esta ilha tem uma, de maneira
que não é só rochedo e à roda o mar).

e tu entre corais, náufraga e nua,
a boiar no meu peito à luz da lua.

a consistência das sombras

é esta a consistência das sombras.
a sombra do teu cabelo
a modelar-te a cara,
como a das palmas
das minhas mãos.

a sombra da casa e das árvores
na longa anamorfose
das horas sob a luz.
a sombra de um voo,
rápida, a atravessar

o solo de areão grosso.
a sombra de uma arcada
estirando-se em pintura
inquieta e metafísica.
mas a sombra de uma voz,

a de um lamento,
a de um olhar,
a de uma dúvida,
são da matéria da metáfora
e da sonoridade do tempo,

são representações
que dão outro sentido
à melancolia, aos vãos que há
entre as pregas do mundo,
dos sentimentos, da razão.


VASCO GRAÇA MOURA



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