JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE
Carlos Drummond de Andrade |
Carlos
Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de
1902. Oriundo de uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de
Belo Horizonte, com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde
foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte,
começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que
aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.
Confrontado com a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na
cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que,
apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em
Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de
Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação,
até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Património Histórico e
Artístico Nacional e aposentou-se em
1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do
início de 1969, no Jornal do Brasil.
O
modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de
Drummond, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e
a descontração sintática pareceriam revelar o contrário. A dominante é a
individualidade do autor, poeta da ordem e da consolidação, ainda que sempre, e
fecundamente, contraditórias. Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, detém-se
num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e
do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas,
enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico no seu amargor
e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética
desse modo de ser e estar.
Vem
daí o rigor, que beira a obsessão. O poeta trabalha sobretudo com o tempo,na
sua cintilação cotidiana e subjetiva, no que destila do corrosivo. Em
Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e sobretudo na obra A rosa do povo
(1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da
experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente,
descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida
como um todo. A surpreendente sucessão de obras-primas, nesses livros, indica a
plena maturidade do poeta, mantida sempre.
Várias
obras do poeta foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano,
alemão, sueco, checo e outras línguas. Drummond foi seguramente, por muitas
décadas, o poeta mais influente da literatura brasileira do seu tempo, tendo
também publicado diversos livros em prosa.
Contrariamente,
traduziu os seguintes autores estrangeiros: Balzac (Les Paysans, 1845; Os
camponeses), Choderlos de Laclos
),
Marcel Proust (La Fugitive, 1925; A fugitiva), García Lorca (Doña Rosita, la
soltera o el lenguaje de las flores, 1935; Dona Rosita, a solteira), François
Mauriac (Thérèse Desqueyroux, 1927; Uma gota de veneno) e Molière (Les
Fourberies de Scapin, 1677; Artimanhas de Scapino).
Alvo
de ilimitada admiração , tanto pela sua obra como pelo seu comportamento como
escritor, Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro, no dia 17 de
agosto de 1987, poucos dias após a morte da sua única filha, a cronista Maria
Julieta Drummond de Andrade.
Interpretação: Sílvio Matos
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