POEMA DUM FUNCIONÁRIO
CANSADO
A noite trocou-me os
sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração
confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num
quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às
avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário
apagado
um funcionário triste
a minha alma não
acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito
e Crédito
a minha alma não dança
com os números
tento escondê-la
envergonhado
o chefe apanhou-me com
o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha
conta de empregado
Sou um funcionário
cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto
orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto
irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras
generosas
Flor rapariga amigo
menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras
cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na
prisão da minha vida
isto todas as noites do
mundo numa só noite comprida
num quarto só
ANTÓNIO RAMOS ROSA,
in "O Grito Claro"
António Ramos Rosa |
António Victor Ramos
Rosa, nasceu em Faro, Portugal, no dia
17 de outubro de 1924 e morreu em Lisboa, em setembro de 2013. Foi um poeta,
português, tradutor e desenhador. Ramos Rosa estudou em Faro, não tendo acabado
o ensino secundário por questões de saúde
Quando a Segunda Guerra
Mundial terminou, Ramos Rosa tomou o rumo para Lisboa, depois de ter passado a
juventude em Faro. Na capital, vivendo intensamente a vitória dos Aliados,
trabalhou no comércio, atividade que logo abandonou para se dedicar à poesia. Nos
anos cinquenta, um dos diretores das revistas Árvore, Cassiopeia e Cadernos do
Meio-Dia. Colaborou ainda com textos de crítica literária na Seara Nova e na
Colóquio Letras, entre outras publicações periódicas.
Como poeta, estreou-se
na coletânea O Grito Claro (1958). Estava criado o movimento da moderna poesia
portuguesa. Ramos Rosa era o poeta do presente absoluto, da «liberdade livre» e
sobe todos os degraus da admiração europeia. Em Portugal é comparado com os
grandes escritores nacionais. Urbano Tavares Rodrigues considerou-o como o
empolgante poeta da coisas primordiais, da luz, da pedra e da água. Em meados
dos anos sessenta, Ramos Rosa radicou-se em Lisboa, onde publicou Viagem
Através Duma Nebulosa (1960). Um dos mais fecundos poetas portugueses da
contemporaneidade, a sua produção reflete uma evolução do subjetivismo, em
relação à objetividade. Refletem-se nela variadas tendências, desde certas
formas experimentais até a um neobarroquismo. A sua escrita, caracterizada por
uma grande originalidade e riqueza de imagens tácteis e visuais, testemunha
muitas vezes uma fusão com a natureza, uma busca de unidade universal em que o
humano participa e se integra no mundo, estabelecendo uma linha de continuidade
entre si e os objetos materiais, numa afirmação de vida e sensualidade. Nos
seus textos, está frequentemente presente uma reflexão sobre o próprio ato da
escrita e a natureza da criação poética, a questão do dizível e do indizível.
Ramos Rosa, também
tradutor, escreveu dezenas de volumes de poesia, entre os quais Voz Inicial
(1960), Sobre o Rosto da Terra (1961), Terrear (1964), A Constituição do Corpo
(1969), A Pedra Nua (1972), Ciclo do Cavalo (1975), Incêndio dos Aspectos
(1980), Volante Verde (1986, Grande Prémio de Poesia Inasset), Acordes (1989,
Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores), Clamores
(1992), Dezassete Poemas (1992), Lâmpadas Com Alguns Insectos (1993), O Teu
Rosto (1994), O Navio da Matéria (1994), Três (1995), As Armas Imprecisas
(1992, Delta, Pela Primeira Vez (1996) e A Mesa do Vento (1997, primeiramente
editado em França), Pátria Soberana e Nova Ficção (2000). Entre os seus
ensaios, contam-se Poesia, Liberdade Livre (1962), A Poesia Moderna e a
Interrogação do Real (1979), Incisões Oblíquas (1987), A Parede Azul (1991) e
As Palavras (2001). Tem recebido numerosos prémios nacionais e estrangeiros,
entre os quais o Prémio Pessoa, em 1988. É geralmente tido como um dos grandes
poetas portugueses contemporâneos. Para Ramos Rosa, escrever é, sempre, a necessidade
de respirar as palavras e de às palavras fornecer o frémito do ser, os pulmões
do sonho, e, com elas, criar a dádiva do poeta. Em 2001, o poeta lançou Antologia
Poética, com prefácio e seleção de Ana Paula Coutinho Mendes
Voz:José-António Moreira
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