Estás aqui comigo e sei
que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de
sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha
de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na
estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me
absolutamente indefeso
diante dos dias. Que
ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro
nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo
nome este nome
de terra de dor de
paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada
mais do que isto
as outras coisas que
fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo
merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome
de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e
tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer
que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além
disto que não isto
Estás aqui comigo
deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem
alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos
domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto
todos os teus gestos
e neste momento eu sei
eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a
palavra paz
Deixa-te estar aqui
perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto
preço por estar aqui
perdoa eu revelar que
há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos
não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente
desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui
estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas
sei que tu estás aqui
RUY BELO,
in "Toda a Terra"
in "Toda a Terra"
Ruy Belo |
Ruy Belo Nascimento
nasceu em 1933 e veio a falecer em Lisboa, em 1978. Poeta e ensaísta, natural
de São João da Ribeira, Rio Maior, licenciado em Filologia Românica e em
Direito pela Universidade de Lisboa, obteve o grau de doutor em Direito
Canónico pela Universidade Gregoriana de Roma, com uma tese intitulada Ficção
Literária e Censura Eclesiástica. Exerceu, ainda que por pouco tempo, o cargo
de diretor-adjunto no então Ministério da Educação Nacional, mas o seu
relacionamento com opositores ao regime da época, a participação na greve
académica de 1962 e a sua candidatura a deputado, em 1969, pelas listas da
Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), levaram a que as suas
atividades fossem vigiadas e condicionadas.
Ocupou, ainda, um lugar
de leitor de Português na Universidade de Madrid (1971-1977). Regressado,
então, a Portugal, foi-lhe recusada a possibilidade de lecionar na Faculdade de
Letras de Lisboa, dando aulas na Escola Técnica do Cacém, no ensino noturno.
Viria a falecer um ano mais tarde, aos 45 anos.
Obras poéticas:
Aquele Grande Rio
Eufrates (1961)
O Problema da Habitação
(1962)
Boca Bilingue (1966)
Homem de Palavras
(1969)
Na senda da poesia
([[1969}})
Transporte no Tempo
(1973)
País Possível (1973)
A Margem da Alegria
(1974)
Toda a Terra (1976)
Despeço-me da Terra da
Alegria (1977).
Todos os Poemas (2001)
Voz: Luís Miguel Cintra
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