sábado, maio 07, 2016

À NOITINHA, COM JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS (ARY DOS SANTOS): "UM HOMEM NA CIDADE"





UM HOMEM NA CIDADE


Agarro a madrugada
como se fosse uma criança
uma roseira entrelaçada
uma videira de esperança
tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem por força da vontade
de trabalhar nunca se cansa.

Vou pela rua
desta lua
que no meu Tejo acende o cio
vou por Lisboa maré nua
que desagua no Rossio.

Eu sou um homem na cidade
que manhã cedo acorda e canta
e por amar a liberdade
com a cidade se levanta.

Vou pela estrada
deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresça na vela da canoa.

Sou a gaivota
que derrota
todo o mau tempo no mar alto
eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.

E quando agarro a madrugada
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada
um malmequer azul na cor.

O malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém
o malmequer desta cidade
que me quer bem que me quer bem!

Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis que me quer bem!


JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS


Acreditamos ser este um dos poemas mais belos que já se compôs para um fado, mesmo entre os muitos que o próprio Ary dos Santos escreveu.
Poderia parecer uma incongruência que um poeta tão revolucionário e tão avesso ao regime salazarista como foi Ary dos Santos, viesse a compor poemas para o fado, género conhecido por esse mesmo regime como a “canção nacional”.
No entanto, Ary dos Santos soube compreender, como muitos outros poetas, que o fado, embora utilizado pelo regime ditatorial como um dos seus símbolos máximos, nada mais era, na verdade, que a manifestação mais pura da alma lisboeta, do seu povo e da própria cidade de Lisboa enquanto locus cultural. E vão surgindo outros elementos do fado, embora Ary dos Santos os aborde de forma bem diversa da tradicional: “lua cheia de Lisboa”; “velada canoa”; “gaivota”, e; “maré”. A lua deslumbra- se e só então se reflete na vela, enquanto que a gaivota derrota o mau tempo, reflexo do povo, que como se fosse a maré a subir, invade a cidade em sobressalto, metáfora incrível da liberdade trazida pela Revolução de 1974.
Possivelmente nenhum outro poeta da sua geração, em nenhum outro momento, terá sabido encontrar as palavras tão certas para descrever a integração de um “Portugal que foi” e um “Portugal que vai ser” como Ary dos Santos o fez nesse poema. E o facto de ser um poema que foi composto para um fado consegue concretizar de forma ainda mais eficaz essa integração.

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