quarta-feira, maio 31, 2017

AMANHÃ E TODOS OS DIAS. DIA MUNDIAL DA CRIANÇA - 1 DE JUNHO DE 2017



"A criança tem a vantagem de estrear o mundo, iniciando outro matrimónio entre as coisas e os nomes. Outros a elas se semelham, à vida sempre recém-chegando. São os homens em estado de poesia, essa infância autorizada pelo brilho da palavra"
Mia Couto
in“Cronicando”
(O viajante clandestino)



Declaração Universal dos Direitos da Criança
(Ata da criação da Declaração dos Direitos da Criança – UNICEF)

A Declaração dos Direitos da Criança foi proclamada pela Resolução da Assembleia Geral 1386 (XIV), de 20 de Novembro de 1959.Tem como base e fundamento os direitos a liberdade, estudos, brincar e convívio social das crianças que devem ser respeitadas e preconizadas em dez princípios.

Princípio I - À igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade.
A criança desfrutará de todos os direitos enunciados nesta Declaração. Estes direitos serão outorgados a todas as crianças, sem qualquer excepção, distinção ou discriminação por motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de outra natureza, nacionalidade ou origem social, posição económica, nascimento ou outra condição, seja inerente à própria criança ou à sua família.

Princípio II - Direito a especial proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e social.A criança gozará de protecção especial e disporá de oportunidade e serviços a serem estabelecidos em lei e por outros meios, de modo que possa desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade

Princípio III - Direito a um nome e a uma nacionalidade.A criança tem direito, desde o seu nascimento, a um nome e a uma nacionalidade.

Princípio IV - Direito a alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe.
A criança deve gozar dos benefícios da previdência social. Terá direito a crescer e desenvolver-se em boa saúde; para essa finalidade deverão ser proporcionados, tanto a ela, quanto à sua mãe, cuidados especiais, incluindo-se a alimentação pré e pós-natal. A criança terá direito a desfrutar de alimentação, moradia, lazer e serviços médicos adequados.

Princípio V - Direito a educação e a cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente.A criança física ou mentalmente deficiente ou aquela que sofre de algum impedimento social deve receber o tratamento, a educação e os cuidados especiais que requeira o seu caso particular.

Princípio VI - Direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade.
A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afecto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe.

Princípio VII - Direito a educação gratuita e ao lazer infantil.
O interesse superior da criança deverá ser o interesse director daqueles que têm a responsabilidade por sua educação e orientação; tal responsabilidade incumbe, em primeira instância, a seus pais.
A criança deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras os quais deverão estar dirigidos para educação; a sociedade e as autoridades públicas se esforçarão para promover o exercício deste direito.
A criança tem direito a receber educação escolar, a qual será gratuita e obrigatória, ao menos nas etapas elementares. Dar-se-á à criança uma educação que favoreça sua cultura geral e lhe permita - em condições de igualdade de oportunidades - desenvolver suas aptidões e sua individualidade, seu senso de responsabilidade social e moral. Chegando a ser um membro útil à sociedade.

Princípio VIII - Direito a ser socorrido em primeiro lugar, em caso de catástrofes.A criança deve - em todas as circunstâncias - figurar entre os primeiros a receber protecção e auxílio.

Princípio IX - Direito a ser protegido contra o abandono e a exploração no trabalho.A criança deve ser protegida contra toda forma de abandono, crueldade e exploração. Não será objecto de nenhum tipo de tráfico.
Não se deverá permitir que a criança trabalhe antes de uma idade mínima adequada; em caso algum será permitido que a criança dedique-se, ou a ela se imponha, qualquer ocupação ou emprego que possa prejudicar sua saúde ou sua educação, ou impedir seu desenvolvimento físico, mental ou moral.

Princípio X - Direito a crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos. A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra índole. Deve ser educada dentro de um espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universais e com plena consciência de que deve consagrar suas energias e aptidões ao serviço de seus semelhantes.


O NOSSO AMOR E ABRAÇO PARA TODAS ELAS





PELA NOITE, COM JOAQUIM PESSOA: "BALADA DO MEDO"




BALADA DO MEDO


Eram quatro cavalos de silêncio negro.
Quatro esporas ferindo as éguas do canto.
Quatro asas de fumo sobre o pensamento.
Quatro sombras de medo à volta da casa.

Eram quatro nomes. E quatro navalhas.
Eram quatro paredes. E quatro guardas.
Eram quatro assassinos. E quatro espingardas.
Eram quatro sorrisos. E quatro canalhas.

Eram quatro. Eram quatro. E o meu peito batia.
Quatro lanças no sangue. Quatro gritos na voz.
Quatro lenços de vento. Quatro rosas tardias.
Eram quatro forcas. Eram quatro nós.

Eram quatro letras com rasto de lume.
Quatro olhos acesos na boca da noite.
Quatro harpas cantando a hora de um crime.
Eram quatro farpas. Eram quatro açoites.

Quatro balas. Quatro. Eram quatro, sim.
Eram quatro servos. E quatro chicotes.
Eram quatro cabeças. E quatro garrotes.
Eram sempre quatro os gritos que ouvi.

Quatro rosas negras. Quatro armas brancas.
Quatro luas velhas. Quatro aves de sono.
Quatro feridas sujas. Quatro hienas mortas.
Eram quatro lobos. Quatro cães sem dono.

Eram quatro. Eram quatro. Agora me lembro
das vozes gritando ao longo do tejo.
Eram quatro gaivotas no céu de Novembro.
Quatro mãos em sangue que agora não vejo.

Eram quatro copos. Eram quatro taças.
Eram quatro algemas. Eram quatro espadas.
Eram quatro pombas quase esfaceladas.
Eram quatro risos. E quatro desgraças.

Eram quatro, sim. Eram sempre quatro
as feridas abertas na palma da mão.
Eram quatro janelas fechadas no quarto.
Eram quatro loucos com olhos de cão.

Eram quatro tempos num tempo de medo.
Eram quatro, eram, as larvas do tédio.
Eram quatro mortes todas em segredo.
Eram quatro vidas todas sem remédio.

Foram sempre quatro as lutas que eu tive
com quatro cavalos qual deles o mais forte.
Quatro razões certas por quem um homem vive
sem temer os quatro cavalos da morte.


JOAQUIM PESSOA,
in “125 poemas - Antologia poética”



Voz: João Morgado


domingo, maio 28, 2017

PELA NOITE, COM VASCO GRAÇA MOURA: " O SONETO ENCONTRADO NA GARRAFA"




O SONETO ENCONTRADO NA GARRAFA


é a ti que eu quero nesta ilha deserta:
livro nenhum, quadro nenhum, nem disco
(gosto de tanta coisa que faísco
mas a escolher assim nunca se acerta).

quero trazer-te a ti, ágil, desperta,
despenteadamente a cada risco,
e viver de algas, peixes e marisco
e nunca mais fazer sinais de alerta

e os navios ao longe ver passar,
enquanto a roupa seca na palmeira
(esta ilha tem uma, de maneira
que não é só rochedo e à roda o mar).

e tu entre corais, náufraga e nua,
a boiar no meu peito à luz da lua.

a consistência das sombras

é esta a consistência das sombras.
a sombra do teu cabelo
a modelar-te a cara,
como a das palmas
das minhas mãos.

a sombra da casa e das árvores
na longa anamorfose
das horas sob a luz.
a sombra de um voo,
rápida, a atravessar

o solo de areão grosso.
a sombra de uma arcada
estirando-se em pintura
inquieta e metafísica.
mas a sombra de uma voz,

a de um lamento,
a de um olhar,
a de uma dúvida,
são da matéria da metáfora
e da sonoridade do tempo,

são representações
que dão outro sentido
à melancolia, aos vãos que há
entre as pregas do mundo,
dos sentimentos, da razão.


VASCO GRAÇA MOURA



sexta-feira, maio 26, 2017

PELA NOITE, COM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: "JOSÉ"



JOSÉ


E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. Oriundo de uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte, com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.

Confrontado com a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional e  aposentou-se em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

O modernismo não chega a ser dominante nem mesmo nos primeiros livros de Drummond, Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934), em que o poema-piada e a descontração sintática pareceriam revelar o contrário. A dominante é a individualidade do autor, poeta da ordem e da consolidação, ainda que sempre, e fecundamente, contraditórias. Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, detém-se num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico no seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser e estar.

Vem daí o rigor, que beira a obsessão. O poeta trabalha sobretudo com o tempo,na sua cintilação cotidiana e subjetiva, no que destila do corrosivo. Em Sentimento do mundo (1940), em José (1942) e sobretudo na obra A rosa do povo (1945), Drummond lançou-se ao encontro da história contemporânea e da experiência coletiva, participando, solidarizando-se social e politicamente, descobrindo na luta a explicitação de sua mais íntima apreensão para com a vida como um todo. A surpreendente sucessão de obras-primas, nesses livros, indica a plena maturidade do poeta, mantida sempre.

Várias obras do poeta foram traduzidas para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, checo e outras línguas. Drummond foi seguramente, por muitas décadas, o poeta mais influente da literatura brasileira do seu tempo, tendo também publicado diversos livros em prosa.

Contrariamente, traduziu os seguintes autores estrangeiros: Balzac (Les Paysans, 1845; Os camponeses), Choderlos de Laclos
), Marcel Proust (La Fugitive, 1925; A fugitiva), García Lorca (Doña Rosita, la soltera o el lenguaje de las flores, 1935; Dona Rosita, a solteira), François Mauriac (Thérèse Desqueyroux, 1927; Uma gota de veneno) e Molière (Les Fourberies de Scapin, 1677; Artimanhas de Scapino).

Alvo de ilimitada admiração , tanto pela sua obra como pelo seu comportamento como escritor, Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro, no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias após a morte da sua única filha, a cronista Maria Julieta Drummond de Andrade.


Interpretação: Sílvio Matos



IMAGEM DO DIA, COM CHARLES CHAPLIN





quinta-feira, maio 25, 2017

IMAGEM DO DIA, COM CHARLES CHAPLIN







PELA NOITE, COM VASCO GRAÇA MOURA: "BLUES DA MORTE DE AMOR"




BLUES DA MORTE DE AMOR


já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah não
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.


a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.


há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes. uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete:- morrer ou não morrer, darling, ah, sim.



VASCO GRAÇA MOURA,
in “Antologia dos Sessenta Anos”



Vasco Graça Moura
Vasco Navarro da Graça Moura (1942-2014) foi um escritor, tradutor e político português, natural do Porto. Licenciado em Direito, atividade que chegou a exercer, foi secretário de estado da Segurança Social do IV Governo Provisório e secretário de estado dos Retornados do VI Governo Provisório. Nomeado diretor de programas da RTP, em 1978, nesse mesmo ano passou à Imprensa Nacional-Casa da Moeda, cuja área editorial administrou até 1988. Entre 1988 e 1995 foi presidente da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. É autor de obras de ensaio, poesia, romance, e ainda de traduções.

Paralelamente, desenvolveu uma ampla intervenção pública como comentador e analista político. A sua obra iniciou-se em 1963, com o título “Modo Mudando”, a que se seguiram “O Mês de Dezembro” (1977), Instrumentos para a “Melancolia” (1980), “A Variação dos Semestres deste Ano”; “365 Versos” (1981), “Nó Cego”, o regresso (1982), “Os Rostos Comunicantes” (1984), “A Sombra das Figuras” (1985), “A Furiosa Paixão pelo Tangível” (1987), “O Concerto Campestre” (1993), Sonetos Familiares (1994), Poemas Escolhidos 1963-1995 (1996), Poemas com Pessoas (1997), “Uma Carta no Inverno” (1997, prémio de Poesia APE/CTT de 1997) e “Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas” (1998). Entre os seus ensaios encontram-se “David Mourão-Ferreira ou a Mestria de Eros” (1978), “Camões e a Divina Proporção” (1985), “Os Penhascos e a Serpente” e “Outros Ensaios Camonianos” (1987), “Várias Vozes” (1987), “Retrato de Isabel e Outras Tentativas” (1994) e “Contra Bernardo Soares e Outras Observações” (1999).

Na sua vasta obra encontramos igualmente obras de ficção, entre as quais “Quatro Últimas Canções” (1987), “Naufrágio de Sepúlveda” (1988), “Partida de Sofonista às Seis e Doze da Manhã” (1993) e “A Morte de Ninguém” (1998). Vasco Graça Moura escreveu ainda uma peça de teatro “Ronda dos Meninos Expostos” (1987), um diário “As Circunstâncias Vividas” (1995) e as crónicas de “Papéis de Jornal” (1995). Distinguindo-se publicamente como tradutor, amplamente consagrado, as suas traduções da “Vita Nuova” e da “Divina Comédia de Dante” (1995) mereceram-lhe a atribuição do Prémio Pessoa, em 1995. Em 2000, publica “Poesia 1997-2000”, seguido do romance “Meu Amor, era de Noite” (2001).


PUBLICAR MIA COUTO É SEMPRE UM PRIVILÉGIO...



MUDANÇA  DE IDADE


Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.


MIA COUTO.
in “Tradutor de chuvas”





Mia Couto
Mia Couto (1955), pseudónimo de António Emílio Leite Couto, nasceu na cidade da Beira, em Moçambique, África, no dia 5 de julho de 1955. Filho de Fernando Couto, emigrante português, jornalista e poeta que pertencia aos círculos intelectuais de sua cidade. Com 14 anos, Mia Couto publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira. Em 1971 deixou a cidade da Beira e foi para a capital Lourenço Marques, hoje Maputo, para ingressar no curso de Medicina, que não chegou a concluir. 
A partir de 1974 passou a trabalhar como jornalista na Tribuna e no Jornal de Notícias. Em 1976, com a independência de Moçambique, tornou-se repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique. Foi jornalista da revista semanal Tempo, entre 1979 e 1981. Em 1983, publicou o seu primeiro livro de poesias “Raízes de Orvalho”. Em 1985, abandona a carreira de jornalista e ingressa no curso de Biologia, na Universidade de Eduardo Mondlane, na especialidade de Ecologia.

Em 1992, Mia Couto publicou “Terra Sonâmbula”, o seu primeiro romance, escrito em prosa poética, onde compõe uma bela fábula passada no Moçambique pós-independência, mergulhado na devastadora guerra civil que se estendeu por dez anos. Em 1995, a obra ganhou o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos. O livro foi considerado por um júri especial da Feira do Livro de Zimbabwe, um dos melhores doze livros africanos do século XX.
Mia Couto escreve poesias, contos, romances e crónicas. Entre as suas obras destacam-se: “Cada Homem é Uma Raça” (1990), “Cronicando” (1991), “Raízes de Orvalho e Outros Poemas” (1999), “Mar Me Quer” (2000), “Um Rio Chamado Tempo” (2002), “O Fio das Missangas” (2003), “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” (2008), “Tradutor de Chuvas” (2011), “A Confissão da Leoa” (2012) e “Mulheres de Cinza” (2015).

Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado além-fronteiras e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. Recebeu inúmeros prémios nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto da obra literária, entre eles contam-se: Prémio Vergílio Ferreira (1999), pelo conjunto da obra, Prémio União Latina de Literaturas Românicas (2007) e Prémio Camões (2013). 
É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, para a cadeira nº 5.
Como Biólogo, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca, em 1992. Realiza trabalhos de pesquisa em diversas áreas, especialmente em áreas costeiras. É diretor da empresa “Impacto”, que realiza avaliações de impacto ambiental. É professor da cadeira de Ecologia em diversas faculdades da Universidade Eduardo Mondlane.



quarta-feira, maio 24, 2017

PELA NOITE, COM MANUEL BANDEIRA: "SATÉLITE"




SATÉLITE


Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira.

Muito cosmograficamente
Satélite.

Desmetaforizada,
Desmitificada,

Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão somente
Satélite.

Ah! Lua deste fim de tarde,
Desmissionária de atribuições românticas;
Sem show para as disponibilidades sentimentais!

Fatigado de mais-valia,
gosto de ti, assim:
Coisa em si,
-Satélite.


MANUEL BANDEIRA


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