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quarta-feira, agosto 25, 2010

A MÁGOA

glitters


"Mágoa. [...] Está para lá da tristeza, da solidão, do desejo de lutar pelo que já se perdeu, da raiva de não ter o que mais se queria, da pena de ter deixado fugir um grande amor, por ser demasiado grande.

Primeiro grita-se, barafusta-se, soluça-se em catadupas, fazem-se esperas, mandam-se flores, livros sublinhados, convocam-se os amigos para em quórum planearem connosco uma estratégia de recuperação, sente-se aos solavancos e come-se sem mastigar, num torpor raivoso e revoltado. A vida vai mais depressa do que nós, passa-nos por cima e os dias comem-se uns aos outros. Só queremos que o tempo corra para nos apaziguar a dor e acalmar os papos nos olhos.

Depois é o pós-guerra, a rendição, a entrega das armas e as sentenças de um tribunal marcial interior, em que os juízes são a vida e o réu, o que fizemos dela.
Limpam-se os destroços, enterram-se os mortos, tratam-se os feridos que são as nossas feridas, feitas de saudades, desencontros, palavras infelizes e atitudes insensatas, medos, frustrações e tudo o que não dissemos. Há quem se rodeie de amigos, durma com antigos casos, se enrole numa manta de xadrez e se torne o mais fiel cliente do clube de vídeo da esquina. Há quem tome calmantes, absorva vodka em noitadas vazias como uma esponja inútil, se mude outra vez para casa da mãe, ou parta em uma viagem para um local turisticamente muito apetecível.

O pior é quando se chega lá, apetece tudo menos lá ficar. Percebemos que não há longe nem distância para a dor, e que nenhum amante, amigo, mãe, irmão, droga ou bebida matam a saudade do que já fomos ou de quem já tivemos nos braços.
A mágoa chega então, quando o cansaço já não nos deixa sentir mais nada. É silenciosa e matreira, instala-se sem darmos por ela, aloja-se no coração e começa a deixar sinais aqui e ali, dentro de nós. A pouco e pouco sentimos que já não somos a mesma pessoa.
As cicatrizes podem esbater-se com os anos e ser remendadas com hábeis golpes de plástica, mas ficarão para sempre debaixo dos excertos que fazemos à alma.
O cansaço mata tudo. A raiva de não termos quem tanto amámos, a fúria de não sermos donos da nossa vontade, o orgulho de termos perdido quem mais queríamos. Só não mata as saudades e a vontade de continuar a sonhar que um dia pode mudar outra vez e libertar-nos de nós mesmos e do sofrimento, tão grande quanto involuntário, tão patético quanto verdadeiro.

Às vezes, quando a mágoa é enorme e sufoca, vegetamos em silêncio para que ela não nos coma. Fingimos que está tudo bem, rimo-nos de nós próprios perante os outros e até mesmo perante o outro que vive dentro de nós. Tornamo-nos espectadores da nossa dor. Afastamo-nos de nós, do que somos, daquilo em que acreditamos. No fundo estamos a desistir, como quem volta atrás porque tem medo do escuro, vencidos pela desilusão cansadas de esperar em casa que o mundo pare e se lembre de nós.
Mas o mundo nunca pára. Nada pára. A vida foge, os dias atropelam-se, é preciso continuar a vivê-los, mesmo com dor, mesmo com mágoa. Pelo menos a mágoa magoa, faz-nos sentir vivos.

Arde no peito e no orgulho, mas pouco a pouco vai matando a dor.

Torna-se a nossa companheira mais próxima, deixando de nos defender da tristeza que se vai consumindo como uma vela esquecida num presépio morto que uma corrente de ar ou um novo sopro de vida um dia apagará. Mas isso só é possível quando conseguirmos esquecer."

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A PAIXÃO


Paixão


"Não há nada melhor do que estar apaixonado. 
Nem pior.
Primeiro estranha-se, depois, entranha-se. A paixão dá para tudo. Para rir e chorar, fazer confidências, namorar ao luar a beber coca-colas de lata e sentir-se mais feliz do que se se estivesse numa suite. Do trigésimo andar do Pierre em Manhattan a beber Don Perignon.
Estar apaixonado é um estado de graça e de desgraça. Tira o sono e dá speed. Rouba a fome e mata a sede. Perde-se a noção do tempo, espaço, até do ridículo. Ganha-se força, vontade, desejo e anos de vida.
Estar apaixonado é investir uma fortuna que demorou anos a amealhar num negócio de alto risco. 
E ainda por cima fazê-lo conscientemente. 
Porque a paixão é melhor do que qualquer bebida, droga ou paraíso terrestre. Uma pessoa apaixonada vai onde quer porque passa de repente a desconhecer os seus limites. Vê-se sem perceber bem como a fazer coisas impensáveis."


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CORAÇÕES


Paixão
"Há muitos tipos de corações.


Há corações que são como casas antigas, cheios de mistérios e fantasmas, com jardins secretos e sótãos poeirentos, carregados de memórias e recordações e há corações simples e fáceis de conhecer, descontraídos e leves, sempre em férias como tendas de campismo. Há corações viajantes, temerários e corajosos, como barcos à vela que nos parecem bonitos ao longe, mas que nos deixam sempre na boca o sabor amargo de nunca os conseguirmos abarcar... Há corações missionários, despojados e enormes. Há corações que são paquetes de luxo, onde o requinte é a palavra-chave para baterem... Há corações que são como borboletas e voam de um lado para o outro sem parar, numa pressa ansiosa de viver tudo antes que a vida se acabe.


Há corações que são como elefantes do zoo, muito grandes, pacíficos e passivos que aceitam viver limitados pelos outros e que até tocam o sino se os tratarmos bem e lhes dermos mimos e corações aventureiros, sempre prontos para partir em difíceis expedições e se ultrapassarem a si mesmos. Há corações rebeldes e selvagens que não suportam laços nem correntes, corações que correm tão depressa como chitas e matam como leoas, e depois há corações gnus, que sabem que vão ser caçados mas não fogem ao seu destino...


Há corações que são como rosas, caprichosas e cheios de espinhos e outros que são campainhas, simplórios e carentes sempre a chamar por afecto. Há corações que são como girassóis, rodando as suas paixões ao sabor do brilho e da glória e corações como batata-doce, que só crescem e se alimentam se estiverem bem guardados e escondidos debaixo da terra.Há corações que são como pianos, altivos e majestosos onde só tocam os que possuem a arte de bem seduzir. E corações como harpas, onde uma simples festa provoca uma sinfonia.


Há corações incondicionais que vivem tão maravilhados em descobrir a grandeza de outros corações que às vezes se esquecem de si próprios... Há corações estrategas, que batem ao ritmo de esquemas e planos, corações transgressores que vivem para amar clandestinamente e só sabem desejar o proibido e corações conservadores, que só se entregam quando tudo é de acordo com os seus padrões e valores.
Há corações a motor, que vivem só para o trabalho e corações poetas só se alimentam de sonhos e ilusões. Há corações teatrais, para quem a vida é uma comédia ou uma tragédia e corações cinéfilos que registam a beleza de cada momento em frames de paixão.


Há corações duros como aço, sem arritmias, onde nada risca e faz mossa e corações de plasticina que se moldam às formas dos corações que amam. Há corações de papel, bonitos e frágeis que se amachucam facilmente e desbotam à primeira lágrima, há corações de vidro que quando se estilhaçam nunca mais se recompõem e corações de porcelana que depois de se partirem ainda sabem colar os destroços e começar de novo.Há corações orientais, espiritualizados e serenos e corações ocidentais hedonistas e ambiciosos, corações britânicos onde tudo é meticulosamente arrumado segundo costumes e convenções, latinos que batem ao som da paixão e da loucura.


Há corações de uma só porta que são como grandes casas de família e outros de duas portas, uma para a sociedade e outra para a intimidade. Há corações que são como conventos, silenciosos e enclausurados e outros que são como hotéis, onde se paga o amor sem amor, escandalosos e promiscuos. Há corações parasitas, que vivem do afecto dos outros sem nada dar e corações dadores que só são felizes na entrega.


Mas há ainda uma ou outra espécie de corações, os corações hospedeiros que sabem receber e fazem sentir os outros corações como se estivessem em casa, que dão e aceitam amor sem se fixarem, que tratam cada passageiro como se fosse o último, enquanto procuram o coração gémeo, sempre na esperança, secreta e nunca perdida de um dia deixarem de viajar e sossegarem para a vida."
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