domingo, outubro 30, 2016

PELA NOITE, COM ARTISTA SEM PENA: " FLORAL"









FLORAL


Você poderia fazer a água amanhecer orvalho?
Poderia trocar as folhas húmidas pela sua pele?
Poderia trocar o arrepio de frio pelo meu toque?


Será que você consegue ver?


Antes de sentir?


A imaginação aqui
não foi cantada
nem é prosa
nem é verso.


Na minha mente
foi uma bela visão.



ARTISTA SEM PENA




NOITE DE HALLOWEEN. ELA AÍ ESTÁ. DIVIRTAM-SE!




Ao analisarmos o modo como o Halloween é celebrado hoje, veremos que pouco tem a ver com as suas origens. Só restou uma alusão aos mortos, mas com um carácter completamente distinto do que tinha no início. Além disso, foi sendo incorporada pouco a pouco, toda uma série de elementos estranhos tanto à festa de Finados como à de Todos os Santos.

Origens do Halloween

Entre os elementos acrescidos, surge o costume dos "disfarces", por exemplo, muito possivelmente nascido em França entre os séculos XIV e XV. Nessa época a Europa foi flagelada pela Peste Negra, e a peste bubónica dizimou perto de metade da população do Continente, e espalhou assim, entre os católicos, um grande temor e preocupação com a morte.

As missas da festa dos Fiéis Defuntos multiplicaram-se, e deram origem ao aparecimento de muitas representações artísticas que recordavam às pessoas a sua própria mortalidade, e bastantes dessas representações foram conhecidas como danças da morte ou danças macabras.

Alguns fiéis dotados de um espírito mais burlesco, tinham o costume de ornamentar, na véspera da festa de finados, as paredes dos cemitérios com imagens do diabo puxando uma fila de pessoas para a o túmulo: papas, reis, damas, cavaleiros, monges, camponeses e leprosos, fiéis ao princípio de que afinal a morte não respeita ninguém. Também se fizeram representações cénicas, com pessoas  disfarçadas de personalidades famosas, personificando a morte, à qual ninguém escapava.

Jack O'Lantern 

Possivelmente, a tradição de pedir um doce, sob a ameaça de fazer uma travessura ("trick or treat", doçura ou travessura), teve a sua origem em Inglaterra, no período da perseguição protestante contra os católicos (1500-1700). Nesse período, os católicos ingleses foram privados dos direitos legais e não podiam exercer qualquer cargo público. Além disso, foram-lhes infligidas multas pesadas e impostos altos e até mesmo a prisão. Celebrar a missa era passível da pena capital e centenas de sacerdotes foram martirizados.

Produto dessa perseguição foi ainda a tentativa de atentado contra o rei protestante Jorge I. O plano, conhecido como "Gunpowder Plot" (Conspiração da Pólvora), consistia em fazer explodir o Parlamento, matando o rei e assim dar início  a uma revolta dos católicos oprimidos. A trama foi descoberta em 5 de novembro de 1605, quando um católico converso chamado Guy Fawkes foi apanhado a guardar pólvora em sua casa, sendo por isso imediatamente enforcado .

Em pouco tempo a data converteu-se numa grande festa em Inglaterra (que perdura até hoje). Muitos protestantes celebravam-na usando máscaras e visitando as casas dos católicos para lhes exigir cerveja e bolos, dizendo ao mesmo tempo, as palavras: "trick or treat", (doçuras ou travessuras).

Mais tarde a comemoração do dia do Guy Fawkes chegou à América, levada pelos primeiros colonos, que a transferiram para o dia 31 de outubro, unindo-a com a festa do Halloween, anteriormente introduzida no país pelos emigrantes irlandeses.

Assim, é fácil chegar à conclusão de que a atual festa do Halloween é um produto resultante da mescla de muitas tradições, importadas pelos colonos no século XVIII para os Estados Unidos e ali integradas, de modo peculiar, na sua cultura. Muitas delas já foram esquecidas na Europa, onde hoje, por colonização cultural dos Estados Unidos, aparece o Halloween, enquanto, infelizmente, desaparecem muitas das tradições locais.

Trick or treat
 
É oportuno referir aqui que a celebração do dia 31 de outubro, muito possivelmente em virtude da sua origem como festa dos druidas, vem sendo ultimamente promovida por diversos grupos neo-pagãos, e em alguns casos assume o caráter de celebração ocultista.

Hollywood produziu vários filmes, entre os quais se destaca a série "Halloween", na qual a violência plástica e os assassinatos acabam por criar no espectador um estado de angústia e ansiedade. Muitos desses filmes, apesar das restrições à sua exibição, acabam por ser vistos por crianças e geram nelas o medo e uma ideia errada da sociedade. Porém, não existe ligação desta festa com o mal.

Na celebração atual do Halloween, podemos notar a presença de muitos elementos ligados ao folclore em torno da bruxaria. As fantasias, enfeites e outros produtos comercializados por ocasião desta festa estão repletos de bruxas, gatos pretos, vampiros, fantasmas e monstros, não faltando as imprescindíveis abóboras iluminadas, representativas do mítico "Jack O'Lantern" (Jack o Lanterna).

Mas isto não reflete a realidade pagã e hoje são sobretudo os jovens e as crianças que se reúnem e se mascaram com adornos típicos desta ocasião. Celebram o Halloween como mais um motivo de diversão, num espírito muito semelhante ao carnavalesco.

Máscaras do Halloween
Por isso, aproveitem o que de bom esta festa pode proporcionar: convívio e muita alegria.

Divirtam-se!




O QUE DEPOIS DE AMANHÃ CELEBRAMOS - DIA DE TODOS OS SANTOS (1 DE NOVEMBRO DE 2016)


Evangelho segundo São Mateus ( 5, 1-12 ):

Ao ver a multidão, Jesus subiu a um monte. Depois de se ter sentado, os discípulos aproximaram-se d'Ele. Então, tomou a palavra e começou a ensiná-los, dizendo:

São Mateus
Felizes os pobres de espírito, porque deles é o reino do Céu.
Felizes os que choram, porque serão consolados.
Felizes os mansos, porque possuirão a Terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração, porque verão Deus.
Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu.
Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por Minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam.

Palavra do Senhor

No dia 1 de novembro, a Igreja Católica celebra a Festa do Dia de Todo os Santos, festa de todos os cristãos que se encontram na glória de Deus, tenham ou não sido canonizados e que também se comprometeram, de maneira radical, com os seus semelhantes. Por isso, nesta Festa, todo o Povo cristão é convidado a entrar em comunhão com Deus e com todo o Homem de boa vontade. Em Portugal, este dia é feriado nacional e dia santo de guarda.

Em Portugal, no Dia de Todos os Santos, feriado nacional e dia santo de guarda, é tradição crianças saírem à rua em pequenos grupos, para pedir o "Pão-por-Deus", de porta em porta. Quando pedem o Pão-por-Deus, recitam versos e recebem uma oferta, em troca: pão, broa, bolos, romãs, frutos secos, nozes, castanhas ou amêndoas, que guardam nos seus tradicionais sacos de pano. Em algumas regiões, é também usual os padrinhos oferecerem aos afilhados um bolo, o Santoro. Daí este dia também ser conhecido, em certas povoações, como o "Dia dos Bolinhos".

Esta tradição é atribuída à grande fome que aconteceu em Lisboa, como consequência da catástrofe do Terramoto de 1755,  que levou milhares de pessoas da população,  agora ainda mais pobre, a pedir de porta em porta. Infelizmente este costume de pedir o Pão-por-Deus tem vindo a desaparecer, substituído por outras comemorações mais novas e importadas de outras culturas, como o Halloween.


No dia do Pão-por-Deus,
Vais levar uma saquinha,
Com alguns versos meus,
Gratos pela esmolinha.
(Quadra popular)





sábado, outubro 29, 2016

PELA NOITE, COM PEDRO CHAGAS FREITAS: "EU SOU DEUS"





Quando se ama, porque naquele exato segundo em que se ama, tem de se acreditar que é para sempre. 

Mais: tem de se ter a certeza de que é para sempre. 

Amar, mesmo que por instantes, é para sempre. 

E é isso, essa sensação de segundos ou de minutos ou de dias ou de horas ou de anos ou meses, que é para sempre. 

Ama. 

Ama por inteiro.

Ama sem nada pelo meio.

Ama, ama, ama, ama.

Ama.

Porque é só por aquilo que te faz perder a respiração que vale a pena respirar.



Pedro Chagas Freitas
(Eu Sou Deus)





sexta-feira, outubro 28, 2016

MORRE JOÃO LOBO ANTUNES (1944-2016), O PRÍNCIPE DA MEDICINA...



“Brilhante”. “Príncipe da Medicina”. “Fascinado pelo mistério da vida”. “Grande intelectual”. “Grande português”. “Um dos melhores”. Assim era João Lobo Antunes, nas palavras de quem privou com ele. O neurocirurgião morreu, esta quinta-feira, aos 72 anos, vítima de cancro. Uma doença que há mais de um ano o tinha obrigado a afastar-se do bloco operatório. Era, desde 2015, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).

Segundo de seis filhos, João Lobo Antunes nasceu numa família de médicos. Em entrevista a Maria Leonor Nunes e ao Jornal de Letras, em outubro de 2015, recordou que foi o pai, neurologista, quem mais o encaminhou na profissão. “Não há dúvida que teve importância, o meu pai. De seis filhos rapazes, três foram para Medicina, três para a área das neurociências. Vivia-se o cérebro naquela casa.”

Mas João Lobo Antunes esteve para fazer marcha atrás. “A certa altura pensei em ir para cardiologia porque achava a mais a matemática das especialidades. Por outro lado, desapontava-me a ineficácia, a impotência terapêutica da neurologia. Isto há 50 anos.”

Outra razão que quase o levou a afastar-se da neurocirurgia foram as mãos. Isso mesmo. Lobo Antunes confessou ao Jornal de Letras ser pouco “dotado” num ofício que exige “elegância”. “Desenhava com algum talento (na infância), modelava, esculpia, mas não era dotado de mãos habilidosas. Era, portanto, um enorme desafio ir para neurocirurgia e perguntava-me mesmo se seria capaz de usar as mãos para operar. Curiosamente, quando opero, do ponto de vista técnico e gestual, estou mais próximo do pintor, o bisturi mais perto do pincel do que da chave de fendas. (…) A pouco e pouco, consegui dominar bem as duas mãos. São a guitarra e a viola. E comecei a ter um prazer quase sensual no ato da cirurgia e um conceito estético“, descreveu.

Dedicou a sua carreira principalmente ao estudo do hipotálamo e da hipófise. O cérebro era para ele “sagrado” e, como tal, devia ser tocado “com rigor e especial delicadeza”. Nos Estados Unidos aprendeu a doutrina de tirar um tumor sem tocar no cérebro, o que nem sempre era possível. Lobo Antunes foi o primeiro médico a implantar o olho eletrónico num cego, em 1983. Depois dele, seguiram-se 15 operações do género, permitindo aos doentes ver algumas formas e distinguir certas cores.


“Foi uma das figuras que mais marcou a saúde em Portugal, a ciência e a investigação biomédica”, realçou o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, após a notícia da morte do médico, com quem trabalhou no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. “Foi um verdadeiro visionário. Um dos maiores do nosso tempo.”

Lobo Antunes nunca esqueceu os seus pacientes e as histórias deles. E nunca abandonou a questão da ética, tendo chegado a presidente do CNECV em 2015. Por várias vezes falou publicamente sobre a dignidade da vida humana e debateu alguns dos dilemas do final da vida e da morte. Quando a polémica eutanásia começou a ser falada, ele recusou a ideia de um referendo e preferiu sempre focar-se na importância dos cuidados paliativos, antes de se pronunciar sobre a eutanásia.

Uma vida entre batalhas vencidas e perdidas
"Tenho refletido muito sobre o que foi a minha vida e diria que se houve guerra foi vivida com leveza. Perdi muitas batalhas, como médico e cirurgião. Mas ganhei mais do que perdi. Devo dizer que sempre com uma estratégia cautelosa. Nunca me meti numa guerra que não achasse que tinha possibilidade de vencer. Ou seja, fui sempre pragmático, apesar dos meus devaneios literários ou filosóficos. E tive muitas quando voltei a Portugal.”
João Lobo Antunes
Jornal de Letras (2015)

O futuro da medicina
Não sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão.”
João Lobo Antunes
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015

O balanço final
A doença convida ao exame da vida, provavelmente a única circunstância em que chegamos próximo da análise lúcida do caminho percorrido. Então regressam à cena os actores esquecidos da nossa biografia. Voltamos a viver os momentos em que subimos mais alto do que alguma vez aspirámos, ou descemos àquela profundidade em que a vergonha nos perdera. Ouvimos novamente as palavras que deveríamos ter contido ou então, pelo contrário, as que ficaram por dizer. Contabilizamos o balanço final e escrevemos, com um sorriso e um travo de amargura, o último currículo.”
Obra Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015




Pensamentos emblemáticos, contra todo o esquecimento. Para serem pensados, rezados, seguidos e vividos...

Paz à sua alma.



quarta-feira, outubro 26, 2016

À NOITINHA, COM MIA COUTO: "EU, EM MIM, COLHIA UM JARDIM"



EU, EM MIM, COLHIA UM JARDIM


Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?


MIA COUTO


PELA NOITE, COM PEDRO HOMEM DE MELLO: "O RAPAZ DA CAMISOLA VERDE"



O RAPAZ DA CAMISOLA VERDE


De mãos nos bolsos e de olhar distante,
Jeito de marinheiro ou de soldado,
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Perguntei-lhe quem era e ele me disse
“Sou do monte, Senhor, e um seu criado”.
Pobre rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado.
Vai-te, rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ouvindo-me, quedou-se o bravo moço,
Indiferente à raiva do meu brado,
E ali ficou de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Soube depois ali que se perdera
Esse que só eu pudera ter salvado.
Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.


PEDRO HOMEM DE MELLO




ESTA NOITE A MÚSICA ANDA NO AR, COM PABLO ALBORÁN: "QUIÉN","POR FIN", "TANTO"



ESTA NOITE, PABLO ALBORÁN...




sexta-feira, outubro 21, 2016

À NOITINHA, COM SOPHIA DE MELLO BREYNER: "MARINHEIRO SEM MAR"




MARINHEIRO SEM MAR

Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

Todas as cidades são navios
Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios

E ele vai balouçando como um mastro
Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.

Nas confusas redes do seu pensamento
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento

E sobe por escadas escondidas
E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro

Vai nos contínuos corredores
Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros
Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros
Porque o seu caminho foi perdido
O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres

E é em vão que ele se ergue entre os sinais
Buscando a luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há nos cais

Nenhum mar lavará o nojo do seu rosto
As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas

Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas
  
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas

E o espírito do mar pergunta:

“Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazio
De ondas brancas e fundas
E de verde frio?”

Ele não dormirá na areia lisa
Entre medusas, conchas e corais

Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão

Porque ele se perdeu do que era eterno
E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


IMAGEM DO DIA, COM FERNANDO PESSOA





ESTA NOITE, COM MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA: "MÃE, EU QUERO IR-ME EMBORA"





MÃE, EU QUERO IR-ME EMBORA


Mãe, eu quero ir-me embora - a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.


Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim - tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.


Mãe, eu quero ir-me embora - nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.


Mãe, eu vou-me embora - esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua - a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA,
in “O Canto do Vento nos Ciprestes”


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