quarta-feira, abril 27, 2016

PELA NOITE, COM HERBERTO HELDER (1930-2015): "NÃO SEI COMO DIZER-TE"




NÃO SEI COMO DIZER-TE


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.



HERBERTO HELDER




Herberto Helder nasceu a 23 Novembro 1930 no Funchal, Portugal, e morreu no dia 23 de março de 2015 em Cascais. Foi um escritor português e hoje é considerado o maior poeta da segunda metade do século XX. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa, trabalhando depois como bibliotecário, jornalista e autor de programas radiofónicos. Colaborou em diversas revistas (Graal, Cadernos de Poesia, Búzio, Poesia Experimental 1 e 2, entre outras). Ligado ao movimento da poesia concretista (ou experimental), é conhecida a sua aversão a aparições públicas ou manifestações de reconhecimento da sua notoriedade. Recusou, em 1994, o Prémio Pessoa.
A sua poesia tem uma densa imagética, frequentemente associada a temas ligados ao questionamento do eu, à presença de medos, ao conhecimento do humano, temas ligados por vezes a um certo misticismo, servidos por uma linguagem original e de grande riqueza metafórica.

Estreou-se com O Amor em Visita (1958), publicando, em 1963, um dos seus livros mais célebres, Os Passos em Volta (contos). A sua obra poética inclui ainda A Colher na Boca (1961), Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), Ofício Cantante (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Vocação Animal (1971), Poesia Toda (1973 reeditado em 1981 e 1991), Cobra (1977), O Corpo, o Luxo, a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), A Cabeça entre as Mãos (1982, Prémio de Poesia de 1983 do Pen Clube Português), Edoi Lelia Doura. Antologia das Vozes Comunicantes da Poesia Portuguesa (1985), Flash (1986), As Magias (1987), Do Mundo (1994), Ouolof (Poemas Mudados Para Português) e Poemas Ameríndios (Poemas Mudados Para Português), ambos em edições datadas de 1997. Em 2001, publica Ou o Poema Contínuo
Herberto Helder, inserido no contexto da sua geração, é um poeta que se integra no amplo contexto da cultura poética universal. O seu universo poético autonomiza-se e apresenta características muito próprias.

Herberto Helder é considerado uma das figuras mais importantes da poesia experimental ou concreta, bem como um dos seus principais cultores. É classificado como poeta visionário e órfico e detém um lugar cativo na poesia surrealista portuguesa. Pode, deste modo, constatar-se que a obra de Herberto Helder é complexa e, sem dúvida, uma das mais altas expressões da poesia portuguesa contemporânea.
Considerado por muitos como um poeta fascinante, com um enorme poder encantatório, Herberto Helder tem, no entanto, uma posição paradoxal na Literatura portuguesa, apresentando-se como um poeta obscuro, insuficientemente estudado pela crítica e ausente de manifestações culturais de natureza oficial.


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