quinta-feira, dezembro 29, 2016

PELA NOITE, COM MANUEL ALEGRE: "HORA INVERSA"



HORA INVERSA


Vi hoje as caravelas a morrer no Tejo
Morriam nos teus olhos onde as ilhas
já não traziam a maravilhas e o desejo
como barcos sem velas e sem quilhas
navegava ao contrário em cada beijo.
Só os cavalos corriam sem rédeas nem cilhas.
Tágides minhas onde sois que vos não vejo?

Procurei no teu rosto mas não estavas
e lá de onde te encontras não se volta
já não há nautas para ondas bravas
nem fogo nem revolta nem palavras
agora já não travas tua morte à solta
nem eu sei se começas onde acabas.
Sou o último esquadrão mas não há escolta
para trazer de volta amor que tu buscavas.

Voavam longe os pássaros garajaus
anunciavam terra dizem os cronistas
agora há pescadores e turistas
tainhas e gaivotas na Ribeira das Naus
outras rotas sem ti nem ilhas nunca vistas.
Sopram os ventos frios de Dezembro
eterno é o que se perde o resto passa
há uma ode para ti tu és a Praça
um círculo se traça: esqueço e lembro
o teu corpo me abraça e não me abraça
em ti me apago e só por ti me acendo.

Vi hoje as caravelas a morrer e ouvi
o canto ocidental na praia extrema
e vi o ponto cardeal além de ti
nem sei de outro sinal: que a terra trema
teu rosto me chamava e eu o perdi
não resta mais que o sítio do poema.

Eu não sei porque morrem as caravelas
e com elas teus braços e teu rosto
dizem que certas noites passas pelas
praias onde nos guias de certas estrelas
e há sempre um marinheiro no seu posto
há o teu nome escrito em brancas velas
onde às vezes se vê um rei deposto.

Hora inversa: nem sonho nem Deus nem obra.
Aqui já tudo foi um começar.
Nas sílabas de agora um sino dobra
capelas imperfeitas sobre o mar.
Como chegar onde ninguém responde?
Sombra de sombra um rosto vem e foge
não há tempo no tempo não há onde.
Harpas do vento trazem-me o arpejo
de um desejo a morrer na praia extrema.
Chamo por ti aquém e além poema. Vi hoje
as caravelas a morrer no Tejo.


MANUEL ALEGRE,
in "Bairro Ocidental", pág.19,
Prémio Vida Literária da A.P.E. 2016,
Prémio de Consagração de Carreira da S.P.A.





Manuel Alegre de Melo Duarte nasceu a 12 de Maio de 1936 em Águeda. Estudou em Lisboa, no Porto e na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Foi campeão de natação e actor do Teatro Universitário de Coimbra (TEUC).
Em 1961 é mobilizado para Angola. Preso pela PIDE, passa seis meses na Fortaleza de S. Paulo, em Luanda, onde escreve grande parte do seu primeiro livro "Praça da Canção".
Em Outubro de 1964 é eleito membro do comité da Frente de Libertação Nacional, e passa a trabalhar em Argel, na emissora Voz da Liberdade.
Regressa a Portugal após o 25 de Abril de 1974.
Dirigente histórico do Partido Socialista desde 1974, foi vice-presidente da Assembleia da República de 1995 a 2009, e é membro do Conselho de Estado.
A sua vasta obra literária, que inclui o conto, o romance, o ensaio, mas sobretudo a poesia, tem sido amplamente difundida e aclamada,
Foram-lhe atribuídos os mais distintos prémios literários:
Grande Prémio de Poesia APE-CTT, Prémio de Crítica Literária da AICL, Prémio Fernando Namora e Prémio Pessoa, em 1999.
Ao seu livro "Doze Naus" foi atribuído o Prémio D. Dinis.


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