quarta-feira, março 21, 2012

DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996) - Apontamento de Poesia Contemporânea (Parte VIII)





Mais do que sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido...




Escolhi este poeta e escritor português, David Mourão-Ferreira, para assinalar mais este Dia Mundial da Poesia. Nascido em Lisboa em 1927, foi também em Lisboa que morreu no ano de 1996. De nome David de Jesus Mourão-Ferreira, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1951, onde chegou a ser professor catedrático, organizando e regendo, entre outras, a cadeira de Teoria da Literatura.

David de Jesus Mourão-Ferreira

Foi secretário de Estado da Cultura, entre 1976 e 1979; diretor do diário A Capital; diretor do Boletim Cultural do Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1984 e 1996; diretor da revista Colóquio/Letras; presidente da Associação Portuguesa de Escritores (1984-86) e presidente da Association Internacionale  des Critiques Littéraires. Foi ainda autor de alguns programas de televisão e escreveu diversos poemas imortalizados pela voz de Amália.

A sua obra reparte-se pela poesia; pela crítica literária, como Os Ócios do Ofício, Vinte Poetas Contemporâneos, ou Hospital das Letras ou Lâmpadas no Escuro (de Herculano a Torga); pelo ensaio; pela tradução; pelo teatro; pelo romance; e também pelo jornalismo.

Embora os seus primeiros poemas datem de meados dos anos 40, a sua atividade poética começou a ganhar relevo quando foi codiretor, a par com António Manuel Couto Viana e Luís de Macedo, da revista Távola Redonda (1950-54), que, sem apresentar programa ou manifesto, se apresentava como uma alternativa poética à poesia social, baseada na "revigoração do lirismo", exigindo ao poeta "autenticidade e um mínimo de consciência técnica, a criação em liberdade e, também a diligência e capacidade de admirar, criticamente, os grandes poetas portugueses de gerações anteriores a 1950.

Amália Rodrigues, David Mourão-Ferreira e Maria Barroso,
esposa de Mário Soares.

Foi um escritor sem reservas ideológicas ou preconceitos de ordem estética, ("VIANA, António Manuel Couto - "Breve Historial" in As Folhas Poesia Távola Redonda, Boletim Cultural da F.C.G., VI série, n.º 11, outubro de 1988), atributos a que acresciam como exigências a reação contra a "imediatez da inspiração e contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais", através do equilíbrio "entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas" (cf.MOURÃO-FERREIRA,David - "Notícias sobre a Távola Redonda" in Estrada Larga 3, p.392).

O primeiro volume da Coleção de Poesia das Edições "Távola Redonda" assinala a publicação da sua primeira obra poética, A Secreta Viagem, onde se encontram reunidos alguns dos traços que distinguiriam a sua poética posterior, nomeadamente a preferência pela temática amorosa, o rigor formal, a continuidade e renovação da lírica tradicional como, por exemplo, a de inspiração camoniana, ou a abertura a experiências poéticas estrangeiras. No poema "Dos Anos Quarenta", relembra leituras nessa etapa de iniciação poética: Proust, Thomas Mann, Rilke, Apolinnaire, a "constelação pessoana", Álvaro de Campos, "E Régio Miguéis Nemésio", bem como as circunstâncias que rodearam essa descoberta, como o "despertar do deus Eros", a guerra, a queda dos fascismos e a perseverança da ditadura salazarista.

Tempestade de Verão

Da sua obra poética, cuja poesia se distingue pelo lirismo culto, depurado e subtil, destacam-se os seguintes livros: A Secreta Viagem, Do Tempo ao Coração, Cancioneiro do Natal, Matura Idade e Ode à Música.

David Mourão-Ferreira foi poeta, romancista, critico e ensaísta. A sua poesia caracteriza-se pelas figuras constantes da mulher e do amor, e pela busca deste como forma do conhecimento, sendo considerado como um dos poetas do erotismo na literatura portuguesa. 

A vivência do tempo e da memória são também constantes na sua obra, marcada, a nível de estilo, por uma procura permanente do equilíbrio, de que resulta uma escrita tensa, e pela contenção da força lírica e sensível do poeta numa linguagem rigorosa, trabalhada, de grande riqueza rítmica, melódica e imagística, que fazem dele um clássico da modernidade.

David Mourão-Ferreira e Maria Augusta, sua esposa.

A obra de David Mourão-Ferreira foi várias vezes reconhecida com prémios literários: Prémio de Poesia Delfim Guimarães em 1954, para Tempestade de Verão; Prémio Ricardo Malheiros em 1960, para Gaivotas em Terra; Prémio Nacional da Poesia em 1971, para Cancioneiro de Natal; Prémio da Crítica da Associação Internacional dos Críticos Literários para As Quatro Estações; e, para Um Amor Feliz, os prémios de Narrativa do Pen Clube Português, D.Dinis, de Ficção do Município de Lisboa e o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.


Ao autor foi ainda atribuído, em 1996, ano da sua morte, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.


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POEMAS DE DAVID MOURÃO-FERREIRA:
1- David Mourão-Ferreira; 2- Crepúsculo;
3- Nós temos cinco sentidos;
4- E por vezes as noites duram meses;
5- Mais do que um sonho: comoção!;
6- Escada sem Corrimão.


Crepúsculo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
-que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.


Nós temos cinco sentidos

Nós temos cinco sentidos:
são dois pares e meio de asas.

-Como quereis o equilíbrio?


E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.


Penélope

Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.


Escada sem corrimão

É uma escada em caracol
E que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
Mas nunca passa do chão.
Os degraus, quanto mais altos,
Mais estragados estão,
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição.
Quem tem medo não a sobe
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
O lastro do coração.
Sobe-se numa corrida.
Corre-se prigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
A escada sem corrimão.






DAVID MOURÃO-FERREIRA: "PRIMAVERA"

DAVID MOURÃO-FERREIRA: "BARCO NEGRO"


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