sexta-feira, janeiro 16, 2015

PELA NOITE, COM MIA COUTO: " CONTOS DO NASCER DA TERRA "






  - Posso acompanhá-lo de viver?

Ele não respondeu mais que um riso triste. Lhe escapou uma lágrima. Desceu, cansada pelo rosto, gota em pedra, orvalho em muro branco. A mulher lhe acariciou a sua pele mineral, e ele se arrepiou por dentro. Ela sorriu, confirmado que estava o seu poder de estremecer o dentro de carapaça. E ela insistiu, bailarinhando os dedos sobre a cascadura dele. Se aplicava em lhe renascer doçuras.
  
 - Não vale a pena, Marlisa.
 - Ternura mole em corpo duro tanto dá até que...

O resto do provérbio ela trocou de esquecer.
Com a ponta de um canivete ela inscrevia o seu nome na carapaça do namorado enquanto ia soletrando:
  
 - «M-a-r-l-i...»

(...) Todas as manhãs, ainda hoje se vê Marlisa tonteando pelo parque enquanto empasta a língua numa musiquinha. Depois, se senta olhando o chão. E com demais carinhos e demasiadas ternuras vai afagando a pedra que subjaz nos seus joelhos. As pontas dos dedos, lentas, vão percorrendo reentrâncias no dorso dessa pedra. 

E soletra:
  - «M-a-r...».


MIA COUTO
in "Contos do nascer da terra (Ossos)"




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