terça-feira, agosto 04, 2015

PELA NOITE, COM MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA: "DORME, MEU AMOR"







DORME, MEU AMOR


Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega – o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor –
a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me – eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos
agora e sossega – a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,
meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos – a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
(O Canto do Vento nos Ciprestes)




Maria do Rosário Pedreira, natural de Lisboa, nasceu em 1959. Fez a sua estreia na literatura em 1996, com o livro intitulado "A casa e o cheiro dos livros", cuja receção calorosa fez com que logo se esgotasse a primeira edição. Seu segundo livro, "O Canto do Vento nos Ciprestes", obteve a mesma ovação por parte da crítica. Como escritora tem já vários trabalhos publicados de ficção, poesia, ensaio, crónicas e literatura juvenil.

O seu primeiro livro, "A casa  e o cheiro dos livros", revela-se como uma espécie de poética do espaço, dos interiores das casas. No segundo livro, "O Canto do Vento nos Ciprestes", a poetisa pratica uma retórica que recorda os “ultra-românticos”, na medida em que reveste a expressão dos sentimentos de uma eloquência inesperada. Trata-se de uma poesia que não se contenta em falar de amor, privilegia uma abordagem sobre o morrer de amor.

A mulher que tem voz nos poemas, nunca fala no momento amoroso vivenciado, fruído. O seu discurso fala da espera, da ausência, do temor, da solidão, da memória, do abandono, nunca da relação amorosa presente e jubilosa. O amor na poesia de Maria do Rosário habita o espaço da memória e é sempre exibido em sua incompletude ou como metáfora de uma extrema perda. O discurso poético, depurado de excrescências de sentimentalismo, revela um eu-lírico consciente de que o amor é também a angústia da perda. 


Sem comentários:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...