Iniciamos amanhã, Quarta feira de cinzas, um novo tempo na
liturgia cristã, o Tempo da Quaresma.
É um tempo que se identifica com o deserto, com um retiro de
40 dias, que simboliza os 40 anos de travessia do povo de Deus no deserto após
a libertação do Egito, sob o comando de Moisés até à terra prometida.
O deserto da nossa vida e nele as suas tentações, que podem
fazer tanto de bom como tanto de mau. Não tenhamos medo do deserto nem das
tentações. Tudo serve para robustecer a alma que vai ao encontro de Deus.
Deixo-vos uma pequena história que ilustra bem como pode ser
feita a nossa viagem neste mundo. Deus está lá sempre, basta confiar com
verdade.
A VIDA NUMA HISTÓRIA
Sonhei que caminhava à beira do mar com Deus e revia no
écran do céu todos os dias da minha vida passada, e por cada dia transcorrido
apareciam na areia duas pegadas, as minhas e as de Deus. Mas em alguns
momentos, precisamente naqueles que correspondiam aos dias mais difíceis da
minha vida, vi apenas uma pegada.
Então disse:
- Senhor, escolhi
viver contigo e Tu prometestes que estarias sempre comigo. Por que é que me
deixaste só nos momentos mais difíceis?
Ele respondeu-me:
- Sabes que te amo e
nunca te abandonei. Os dias nos quais há apenas umas pegadas na areia são
aqueles em que eu te levei nos meus braços.
(autor desconhecido)
BOA QUARESMA PARA
TODOS.
Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma 2017,
sobre o tema "A Palavra é um dom. O outro é um dom":
Amados irmãos e irmãs!
A Quaresma é um novo começo, uma
estrada que leva a um destino seguro: a Páscoa de Ressurreição, a vitória de
Cristo sobre a morte. E este tempo não cessa de nos dirigir um forte convite à
conversão: o cristão é chamado a voltar para Deus «de todo o coração» (Jl 2,
12), não se contentando com uma vida medíocre, mas crescendo na amizade do
Senhor. Jesus é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando
pecamos, espera pacientemente pelo nosso regresso a Ele e, com esta espera,
manifesta a sua vontade de perdão (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de
2016).
A Quaresma é o momento favorável
para intensificarmos a vida espiritual através dos meios santos que a Igreja
nos propõe: o jejum, a oração e a esmola. Na base de tudo isto, porém, está a
Palavra de Deus, que somos convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade
neste tempo. Aqui queria deter-me, em particular, na parábola do homem rico e
do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31). Deixemo-nos inspirar por esta página tão
significativa, que nos dá a chave para compreender como temos de agir para
alcançarmos a verdadeira felicidade e a vida eterna, incitando-nos a uma
sincera conversão.
1. O outro é um dom
A parábola inicia com a apresentação
dos dois personagens principais, mas quem aparece descrito de forma mais
detalhada é o pobre: encontra-se numa condição desesperada e sem forças para se
solevar, jaz à porta do rico na esperança de comer as migalhas que caem da mesa
dele, tem o corpo coberto de chagas, que os cães vêm lamber (cf. vv. 20-21).
Enfim, o quadro é sombrio, com o homem degradado e humilhado.
A cena revela-se ainda mais
dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito
promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata duma pessoa
anónima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem
podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível
para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase de família,
torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser
querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a duma
escória humana (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).
Lázaro ensina-nos que o outro é
um dom. A justa relação com as pessoas consiste em reconhecer, com gratidão, o
seu valor. O próprio pobre à porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas
um apelo a converter-se e mudar de vida. O primeiro convite que nos faz esta
parábola é o de abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é
um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. A Quaresma é um tempo
propício para abrir a porta a cada necessitado e nele reconhecer o rosto de
Cristo. Cada um de nós encontra-o no próprio caminho. Cada vida que se cruza
connosco é um dom e merece aceitação, respeito, amor. A Palavra de Deus
ajuda-nos a abrir os olhos para acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é
frágil. Mas, para se poder fazer isto, é necessário tomar a sério também aquilo
que o Evangelho nos revela a propósito do homem rico.
2. O pecado cega-nos
A parábola põe em evidência, sem
piedade, as contradições em que vive o rico (cf. v. 19). Este personagem, ao
contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A
sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto,
a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se
reservava para os deuses (cf. Jr 10, 9) e os reis (cf. Jz 8, 26). O linho fino
era um linho especial que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter
quase sagrado. Assim, a riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque
exibida habitualmente: «Fazia todos os dias esplêndidos banquetes» (v. 19).
Entrevê-se nele, dramaticamente, a corrupção do pecado, que se realiza em três
momentos sucessivos: o amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba (cf. Homilia na
Santa Missa, 20 de setembro de 2013).
O apóstolo Paulo diz que «a raiz
de todos os males é a ganância do dinheiro» (1 Tm 6, 10). Esta é o motivo
principal da corrupção e uma fonte de invejas, contendas e suspeitas. O
dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto de se tornar um ídolo tirânico
(cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 55). Em vez de instrumento ao nosso dispor
para fazer o bem e exercer a solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos
subjugar, a nós e ao mundo inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao
amor e dificulta a paz.
Depois, a parábola mostra-nos que
a ganância do rico fá-lo vaidoso. A sua personalidade vive de aparências,
fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de
máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da
exterioridade, da dimensão mais superficial e efémera da existência (cf. ibid.,
62).
O degrau mais baixo desta
deterioração moral é a soberba. O homem veste-se como se fosse um rei, simula a
posição dum deus, esquecendo-se que é um simples mortal. Para o homem
corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio eu e, por
isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a alçada do seu olhar. Assim o
fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre
esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.
Olhando para esta figura,
compreende-se por que motivo o Evangelho é tão claro ao condenar o amor ao
dinheiro: «Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de um deles e
estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24).
3. A Palavra é um dom
O Evangelho do homem rico e do
pobre Lázaro ajuda a prepararmo-nos bem para a Páscoa que se aproxima. A
liturgia de Quarta-Feira de Cinzas convida-nos a viver uma experiência
semelhante à que faz de forma tão dramática o rico. Quando impõe as cinzas
sobre a cabeça, o sacerdote repete estas palavras: «Lembra-te, homem, que és pó
da terra e à terra hás de voltar». De facto, tanto o rico como o pobre morrem,
e a parte principal da parábola desenrola-se no Além. Dum momento para o outro,
os dois personagens descobrem que nós «nada trouxemos ao mundo e nada podemos
levar dele» (1 Tm 6, 7).
Também o nosso olhar se abre para
o Além, onde o rico tece um longo diálogo com Abraão, a quem trata por «pai»
(Lc 16, 24.27), dando mostras de fazer parte do povo de Deus. Este detalhe
torna ainda mais contraditória a sua vida, porque até agora nada se disse da
sua relação com Deus. Com efeito, na sua vida, não havia lugar para Deus, sendo
ele mesmo o seu único deus.
Só no meio dos tormentos do Além
é que o rico reconhece Lázaro e queria que o pobre aliviasse os seus
sofrimentos com um pouco de água. Os gestos solicitados a Lázaro são
semelhantes aos que o rico poderia ter feito, mas nunca fez. Abraão, porém,
explica-lhe: «Recebeste os teus bens na vida, enquanto Lázaro recebeu somente
males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado» (v. 25). No Além,
restabelece-se uma certa equidade, e os males da vida são contrabalançados pelo
bem.
Mas a parábola continua,
apresentando uma mensagem para todos os cristãos. De facto o rico, que ainda
tem irmãos vivos, pede a Abraão que mande Lázaro avisá-los; mas Abraão
respondeu: «Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam» (v. 29). E, à sucessiva
objeção do rico, acrescenta: «Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco
se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos» (v. 31).
Deste modo se patenteia o
verdadeiro problema do rico: a raiz dos seus males é não dar ouvidos à Palavra
de Deus; isto levou-o a deixar de amar a Deus e, consequentemente, a desprezar
o próximo. A Palavra de Deus é uma força viva, capaz de suscitar a conversão no
coração dos homens e orientar de novo a pessoa para Deus. Fechar o coração ao
dom de Deus que fala, tem como consequência fechar o coração ao dom do irmão.
Amados irmãos e irmãs, a Quaresma
é o tempo favorável para nos renovarmos, encontrando Cristo vivo na sua
Palavra, nos Sacramentos e no próximo. O Senhor – que, nos quarenta dias
passados no deserto, venceu as ciladas do Tentador – indica-nos o caminho a
seguir. Que o Espírito Santo nos guie na realização dum verdadeiro caminho de
conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do
pecado que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos necessitados.
Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual, inclusive
participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos eclesiais, em
várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do encontro na
única família humana. Rezemos uns pelos outros para que, participando na vitória
de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao frágil e ao pobre. Então
poderemos viver e testemunhar em plenitude a alegria da Páscoa.
Vaticano, 18 de outubro de 2016.
Festa do Evangelista São Lucas
FRANCISCO
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