MÁGOA
(...)Está para lá da tristeza, da solidão, do
desejo de lutar pelo que já se perdeu, da raiva de não ter o que mais se
queria, da pena de ter deixado fugir um grande amor, por ser demasiado grande.
Primeiro
grita-se, barafusta-se, soluça-se em catadupas, fazem-se esperas, mandam-se
flores, livros sublinhados, convocam-se os amigos para em quórum planearem
connosco uma estratégia de recuperação, sente-se aos solavancos e come-se sem
mastigar, num torpor raivoso e revoltado. A vida vai mais depressa do que nós,
passa-nos por cima e os dias comem-se uns aos outros. Só queremos que o tempo
corra para nos apaziguar a dor e acalmar os papos nos olhos.
Depois
é o pós-guerra, a rendição, a entrega das armas e as sentenças de um tribunal
marcial interior, em que os juízes são a vida e o réu, o que fizemos dela.
Limpam-se
os destroços, enterram-se os mortos, tratam-se os feridos que são as nossas
feridas, feitas de saudades, desencontros, palavras infelizes e atitudes
insensatas, medos, frustrações e tudo o que não dissemos. Há quem se rodeie de
amigos, durma com antigos casos, se enrole numa manta de xadrez e se torne o
mais fiel cliente do clube de vídeo da esquina. Há quem tome calmantes, absorva
vodka em noitadas vazias como uma esponja inútil, se mude outra vez para casa
da mãe, ou parta em uma viagem para um local turisticamente muito apetecível.
O
pior é quando se chega lá, apetece tudo menos lá ficar. Percebemos que não há
longe nem distância para a dor, e que nenhum amante, amigo, mãe, irmão, droga
ou bebida matam a saudade do que já fomos ou de quem já tivemos nos braços.
A
mágoa chega então, quando o cansaço já não nos deixa sentir mais nada. É
silenciosa e matreira, instala-se sem darmos por ela, aloja-se no coração e
começa a deixar sinais aqui e ali, dentro de nós. A pouco e pouco sentimos que
já não somos a mesma pessoa.
As
cicatrizes podem esbater-se com os anos e ser remendadas com hábeis golpes de
plástica, mas ficarão para sempre debaixo dos excertos que fazemos à alma.
O
cansaço mata tudo. A raiva de não termos quem tanto amámos, a fúria de não
sermos donos da nossa vontade, o orgulho de termos perdido quem mais queríamos.
Só não mata as saudades e a vontade de continuar a sonhar que um dia pode mudar
outra vez e libertar-nos de nós mesmos e do sofrimento, tão grande quanto
involuntário, tão patético quanto verdadeiro.
Às
vezes, quando a mágoa é enorme e sufoca, vegetamos em silêncio para que ela não
nos coma. Fingimos que está tudo bem, rimo-nos de nós próprios perante os
outros e até mesmo perante o outro que vive dentro de nós. Tornamo-nos
espectadores da nossa dor. Afastamo-nos de nós, do que somos, daquilo em que
acreditamos. No fundo estamos a desistir, como quem volta atrás porque tem medo
do escuro, vencidos pela desilusão cansadas de esperar em casa que o mundo pare
e se lembre de nós.
Mas
o mundo nunca pára. Nada pára. A vida foge, os dias atropelam-se, é preciso
continuar a vivê-los, mesmo com dor, mesmo com mágoa. Pelo menos a mágoa magoa,
faz-nos sentir vivos.
Arde
no peito e no orgulho, mas pouco a pouco vai matando a dor.
Torna-se
a nossa companheira mais próxima, deixando de nos defender da tristeza que se
vai consumindo como uma vela esquecida num presépio morto que uma corrente de
ar ou um novo sopro de vida um dia apagará.
Mas isso só é possível quando
conseguirmos esquecer."
MARGARIDA REBELO PINTO
(Crónicas
da Margarida)
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