NÃO
SEI COMO DIZER-TE
Não
sei como dizer-te que minha voz te procura
e
a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida
e vasta.
Não
sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se
enchem de um brilho precioso
e
estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado
o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo
pressentir de um tempo distante,
e
na terra crescida os homens entoam a vindima
—
eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro
de mim, te procuram.
Quando
as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao
lado do espaço
e
o coração é uma semente inventada
em
seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu
arrebatas os caminhos da minha solidão
como
se toda a casa ardesse pousada na noite.
—
E então não sei o que dizer
junto
à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando
as crianças acordam nas luas espantadas
que
às vezes se despenham no meio do tempo
—
não sei como dizer-te que a pureza,
dentro
de mim, te procura.
Durante
a primavera inteira aprendo
os
trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr
do espaço —
e
penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas
quando a sombra cai da curva sôfrega
dos
meus lábios, sinto que me faltam
um
girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa
extraordinária.
Porque
não sei como dizer-te sem milagres
que
dentro de mim é o sol, o fruto,
a
criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o
amor,
que
te procuram.
HERBERTO
HELDER
Herberto Helder nasceu a 23 Novembro 1930 no Funchal,
Portugal, e morreu no dia 23 de março de 2015 em Cascais. Foi um
escritor português e hoje é considerado o maior poeta da segunda metade do
século XX. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa, trabalhando depois como
bibliotecário, jornalista e autor de programas radiofónicos. Colaborou em
diversas revistas (Graal, Cadernos de Poesia, Búzio, Poesia Experimental 1 e 2,
entre outras). Ligado ao movimento da poesia concretista (ou experimental), é
conhecida a sua aversão a aparições públicas ou manifestações de reconhecimento
da sua notoriedade. Recusou, em 1994, o Prémio Pessoa.
A sua poesia tem uma densa imagética, frequentemente
associada a temas ligados ao questionamento do eu, à presença de medos, ao
conhecimento do humano, temas ligados por vezes a um certo misticismo, servidos
por uma linguagem original e de grande riqueza metafórica.
Estreou-se com O Amor em Visita (1958), publicando, em
1963, um dos seus livros mais célebres, Os Passos em Volta (contos). A sua obra
poética inclui ainda A Colher na Boca (1961), Poemacto (1961), Retrato em
Movimento (1967), Ofício Cantante (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Vocação Animal
(1971), Poesia Toda (1973 reeditado em 1981 e 1991), Cobra (1977), O Corpo, o
Luxo, a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), A Cabeça entre as Mãos (1982,
Prémio de Poesia de 1983 do Pen Clube Português), Edoi Lelia Doura. Antologia
das Vozes Comunicantes da Poesia Portuguesa (1985), Flash (1986), As Magias
(1987), Do Mundo (1994), Ouolof (Poemas Mudados Para Português) e Poemas
Ameríndios (Poemas Mudados Para Português), ambos em edições datadas de 1997.
Em 2001, publica Ou o Poema Contínuo
Herberto Helder, inserido no contexto da sua geração, é
um poeta que se integra no amplo contexto da cultura poética universal. O seu
universo poético autonomiza-se e apresenta características muito próprias.
Herberto Helder é considerado uma das figuras mais
importantes da poesia experimental ou concreta, bem como um dos seus principais
cultores. É classificado como poeta visionário e órfico e detém um lugar cativo
na poesia surrealista portuguesa. Pode, deste modo, constatar-se que a obra de
Herberto Helder é complexa e, sem dúvida, uma das mais altas expressões da
poesia portuguesa contemporânea.
Considerado por muitos como um poeta fascinante, com um
enorme poder encantatório, Herberto Helder tem, no entanto, uma posição
paradoxal na Literatura portuguesa, apresentando-se como um poeta obscuro,
insuficientemente estudado pela crítica e ausente de manifestações culturais de
natureza oficial.
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