sábado, abril 23, 2016

À NOITINHA, COM JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS (ARY DOS SANTOS): "POETA CASTRADO,NÃO!"



POETA CASTRADO, NÃO!


Serei tudo o que disserem
 por inveja ou negação:
 cabeçudo dromedário
 fogueira de exibição
 teorema corolário
 poema de mão em mão
 lãzudo publicitário
 malabarista cabrão.
 Serei tudo o que disserem:
 Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
 as linhas com que me escrevo
 reconhecem o que é meu
 em tudo quanto lhes devo:
 ternura como já disse
 sempre que faço um poema;
 saudade que se partisse
 me alagaria de pena;
 e também uma alegria
 uma coragem serena
 em renegada poesia
 quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
 a força que tem um verso
 reconhecem o que é seu
 quando lhes mostro o reverso:

De fome já não se fala
 - é tão vulgar que nos cansa -
 mas que dizer de uma bala
 num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
 - a morte é branda e letal -
 mas que dizer da memória
 de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
 o poema dia a dia?
 - um bisturi a crescer
 nas coxas de uma judia;
 um filho que vai nascer
 parido por asfixia?!

- Ah não me venham dizer
 que é fonética a poesia !
 Serei tudo o que disserem
 por temor ou negação:
 Demagogo mau profeta
 falso médico ladrão
 prostituta proxeneta
 espoleta televisão.
 Serei tudo o que disserem:
 Poeta castrado, não!


JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS,
in Resumo.

Lisboa, 1973.




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