FALA DO HOMEM NASCIDO
Venho da terra
assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar
nada
nem fazer mal a
ninguém.
Só quero o que me é
devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui
ouvido
no ato de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero
passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com
licença!
Que a vida é água a
correr.
Venho do fundo do
tempo;
não tenho tempo a
perder.
Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao
norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira
fechada.
Não há ventos que não
prestem
nem marés que não
convenham,
nem forças que me
molestem,
correntes que me
detenham.
Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as
venceu.
Com licença! Com
licença!
Que a barca se fez ao
mar.
Não há poder que me
vença.
Mesmo morto hei-de
passar.
Com licença! Com
licença!
Com rumo à estrela
polar.
ANTÓNIO GEDEÃO,
Teatro
do Mundo, 1958
António Gedeão,
pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, nasceu em Lisboa a 24 de
novembro de 1906 e morreu no dia 19 de fevereiro de 1997. Foi um poeta
português e professor de físico-química do ensino secundário no Liceu Pedro
Nunes e Liceu Camões, pedagogo, investigador de História da ciência.
Teve um papel importante na
divulgação de temas científicos, colaborando em revistas da especialidade e
organizando obras no campo da história das ciências e das instituições, como A
Actividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos Séculos XVIII e
XIX. Publicou ainda outros estudos, como História da Fundação do Colégio Real
dos Nobres de Lisboa (1959), O Sentido Científico em Bocage (1965) e Relações
entre Portugal e a Rússia no Século XVIII (1979).
Revelou-se como poeta apenas em
1956, com a obra Movimento Perpétuo. A esta viriam juntar-se outras obras, como
Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964),
Linhas de Força (1967) e ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos
(1990). Na sua poesia, reunida também em Poesias Completas (1964), as fontes de
inspiração são heterogéneas e equilibradas de modo original pelo homem que, com
um rigor científico, nos comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da
solidão humana, muitas vezes com surpreendente ironia. Alguns dos seus textos
poéticos foram aproveitados para músicas de intervenção. Em 1963 publicou a
peça de teatro RTX 78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de
ficção, A Poltrona e Outras Novelas (1973).
Na data do seu nonagésimo
aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional, tendo sido
condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Santiago de Espada.
Imagem: pintura de Salvador Dali
Retoques de:
Voz: Adriano Correia de Oliveira
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