quinta-feira, dezembro 22, 2016

HÁ SEMPRE MAIS UM CONTO DE NATAL...




O CAVALEIRO DA DINAMARCA



"...As horas, uma por uma foram passando e longamente o Cavaleiro avançou perdido na escuridão.
Por mais que se enrolasse no seu capote, o ar arrefecia-o até os ossos e as suas mãos começavam a gelar.

Cavaleiro da Dinamarca

Já não sabia há quanto tempo caminhava, e a floresta era como um labirinto sem fim onde os caminhos andavam à roda e se cruzavam e desapareciam.

- Estou perdido - murmurou ele baixinho.
Então a treva encheu-se de pequenos pontos brilhantes, avermelhados e vivos.

Eram os olhos dos lobos.

O Cavaleiro ouvia-os moverem-se em leves passos sobre a neve, sentia a sua respiração ardente e ansiosa, adivinhava o branco cruel dos seus dentes agudos.

Em voz alta disse:

- Hoje é noite de trégua, hoje é noite de Natal.

E ao som destas palavras os olhos recuaram e desapareceram.

Mais adiante ouviu-se o ronco de um urso.

O Cavaleiro estacou a sua montada e a fera aproximou-se. Vinha de pé e pousou as patas de frente no pescoço do cavalo.
O homem ouviu-o respirar; sentiu o seu pêlo tocar-lhe a mão e viu a um palmo de si o brilho dos pequenos olhos ferozes.
E em voz alta disse:

- Hoje é noite de trégua, hoje é noite de Natal.

Então o bicho recuou pesadamente e grunhindo desapareceu.

Casa do cavaleiro
E o Cavaleiro entre o silêncio e treva continuou a caminhar para a frente.Caminhava ao acaso, levado por pura esperança, pois nada via e nada ouvia. As ramagens roçavam-lhe a cara e caminhava sem norte e sem oriente.
O cavalo enterrava-se na neve e avançava muito devagar. Até que de repente parou. O homem tocou-o com as esporas mas ele continuou imóvel e hirto.

- Vou morrer esta noite - pensou o Cavaleiro.

Então lembrou-se da grande noite azul de Jerusalém toda bordada de constelações. E lembrou-se de Baltasar, Gaspar e Melchior, que tinham lido no céu o seu caminho. O céu aqui era escuro, velado, pesado de silêncio. Nele não se ouvia nenhuma voz nem se via nenhum sinal. Mas foi em frente desse céu fechado e mudo que o Cavaleiro rezou.

Rezou a oração dos Anjos, o grande grito de alegria, de confiança e aliança que numa noite antiquíssima tinha atravessado o céu transparente da Judeia. As palavras ergueram-se uma por uma no puro silêncio da neve:

- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Então na massa escura dos arvoredos começou ao longe a crescer uma pequena claridade.

- Deus seja bendito - murmurou o Cavaleiro -. Deve ser uma fogueira. Deve ser algum lenhador perdido como eu que acendeu uma fogueira. A minha reza foi ouvida. Junto dum lume e ao lado de outro homem poderei esperar pelo nascer do dia.

Percurso do Cavaleiro da Dinamarca
O cavalo relinchou. Também ele tinha visto a luz. E reunindo as suas forças, o homem e o animal  recomeçaram a avançar.

A luz continuava a crescer à medida que crescia, subindo do chão para o céu, ia tomando a forma de um cone.

Era um grande triângulo radioso cujo cimo subia mais alto que do todas as árvores.

Agora toda a floresta se iluminava. Os gelos brilhavam, a neve mostrava a sua brancura, o ar estava cheio de reflexos multicolores, grandes raios de luz passavam entre os troncos e as ramagens.

- Que maravilhosa fogueira - pensou o Cavaleiro - Nunca vi fogueira tão bela.

Mas quando chegou em frente da claridade viu que não era uma fogueira. Pois era ali a clareira de bétulas onde ficava a sua casa. E ao lado da casa, o grande abeto escuro, a maior árvore da floresta, estava coberta de luzes. 
Porque os Anjos do Natal a tinham enfeitado com dezenas de estrelas para guiar o Cavaleiro.

Esta história, levada de boca em boca, correu os países do norte. E é por isso que na noite de Natal se iluminam os pinheiros."


FIM


SOPHIA DE MELLO BREYNER, 
in " O Cavaleiro da Dinamarca", 
Figueirinhas, 1.ª ed., 1964)

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