OS ÍNDIOS DA MEIA-PRAIA
Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de
Lagos
Vou fazer-te uma
cantiga
Da melhor que sei e
faço
De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio
pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a
ré
Quando os teus olhos
tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê
peças
De ouro caindo na lota
Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de
terra
Se constrói uma cabana
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro
cabeludo
Quem dera que a gente
tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Adeus disse a
Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal
passado)
Mas nada o prende ao
presente
Se só ele é o enganado
Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado
Eram mulheres e
crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma
orquestra"
Quem diz o contrário é
tolo
E se a má lingua não
cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a
nobreza
Dos índios da
Meia-Praia
Foi sempre a tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixar tudo à dependura
Quando na presa reparas
Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas não por vontade
própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua
história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta
finança
Fazem tudo andar pra
trás
Dizem que o mundo só
anda
Tendo à frente um
capataz
Eram mulheres e
crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma
orquestra"
Quem diz o contrário é
tolo
E toca de papelada
No vaivém dos
ministérios
Mas hão-de fugir aos
berros
Inda a banda vai na
estrada
JOSÉ AFONSO (ZECA AFONSO)
Música e letra: Zeca Afonso
Imagem principal: graffiti do artista Odeith, sito no Distrito da Amadora
Composição gráfica: PBE
Na década de 50,
dezenas de pescadores originários de Monte Gordo chegaram a Lagos, na outra
ponta do Algarve, à procura de trabalho. Na Meia-Praia havia peixe mas faltavam
casas.
Improvisaram-se cabanas
de colmo nas dunas… o aspeto valeu-lhes a alcunha de Índios, os Índios da
Meia-Praia. Quando se deu a revolução de 25 de Abril de 1974 já só restava uma
cabana de colmo. Todas as outras tinham sido transformadas em barracas de zinco,
com os dias contados porque o governo da altura queria acabar com as barracas
no país. Através do serviço ambulatório de apoio local, conhecido como projeto
SAAL, o governo cedeu o terreno, o apoio técnico e parte do dinheiro, se as
populações avançassem com a mão-de-obra.
O fim do bairro de lata
ficaria a dever-se ao arquiteto José Veloso. Difícil foi convencer os moradores
do bairro, que desconfiavam das promessas e chegaram a ameaçar correr José
Veloso à pedrada. O arquiteto não desistiu. Aos poucos, os pescadores
acreditaram que poderiam ter direito a uma casa. Ansiosa por deixar as
barracas, a população organizou-se em turnos. Quando os homens estavam no mar,
eram as mulheres que trabalhavam nas obras. Havia duas regras: as habitações
tinham de começar a ser construídas ao mesmo tempo e todos teriam de ajudar na
construção de todas as casas. O carisma dos Índios da Meia-Praia chegou aos
ouvidos de um realizador de cinema.
António da Cunha Telles
decidiu documentar a transformação que estava em marcha. O trabalho deu origem
à música de Zeca Afonso. Quase quarenta anos depois, este bairro localizado a
poucos passos da praia, numa zona de expansão turística e ao lado de um campo
de golfe, parece ter os dias contados.
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