segunda-feira, novembro 21, 2016

À NOITINHA, COM ZECA AFONSO: "OS ÍNDIOS DA MEIA-PRAIA"





OS ÍNDIOS DA MEIA-PRAIA


Aldeia da Meia-Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço

De Monte-Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha a ré

Quando os teus olhos tropeçam
No voo duma gaivota
Em vez de peixe vê peças
De ouro caindo na lota

Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te mudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro cabeludo

Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia

Adeus disse a Monte-Gordo
(Nada o prende ao mal passado)
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado

Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

E se a má lingua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia

Foi sempre a tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixar tudo à dependura
Quando na presa reparas

Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas

Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua

Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar pra trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz

Eram mulheres e crianças
Cada um c'o seu tijolo
"Isto aqui era uma orquestra"
Quem diz o contrário é tolo

E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada


JOSÉ AFONSO (ZECA AFONSO)



Música e letra: Zeca Afonso
Imagem principal: graffiti do artista Odeith, sito no Distrito da Amadora
Composição gráfica: PBE


Na década de 50, dezenas de pescadores originários de Monte Gordo chegaram a Lagos, na outra ponta do Algarve, à procura de trabalho. Na Meia-Praia havia peixe mas faltavam casas.
Improvisaram-se cabanas de colmo nas dunas… o aspeto valeu-lhes a alcunha de Índios, os Índios da Meia-Praia. Quando se deu a revolução de 25 de Abril de 1974 já só restava uma cabana de colmo. Todas as outras tinham sido transformadas em barracas de zinco, com os dias contados porque o governo da altura queria acabar com as barracas no país. Através do serviço ambulatório de apoio local, conhecido como projeto SAAL, o governo cedeu o terreno, o apoio técnico e parte do dinheiro, se as populações avançassem com a mão-de-obra.
O fim do bairro de lata ficaria a dever-se ao arquiteto José Veloso. Difícil foi convencer os moradores do bairro, que desconfiavam das promessas e chegaram a ameaçar correr José Veloso à pedrada. O arquiteto não desistiu. Aos poucos, os pescadores acreditaram que poderiam ter direito a uma casa. Ansiosa por deixar as barracas, a população organizou-se em turnos. Quando os homens estavam no mar, eram as mulheres que trabalhavam nas obras. Havia duas regras: as habitações tinham de começar a ser construídas ao mesmo tempo e todos teriam de ajudar na construção de todas as casas. O carisma dos Índios da Meia-Praia chegou aos ouvidos de um realizador de cinema. 
António da Cunha Telles decidiu documentar a transformação que estava em marcha. O trabalho deu origem à música de Zeca Afonso. Quase quarenta anos depois, este bairro localizado a poucos passos da praia, numa zona de expansão turística e ao lado de um campo de golfe, parece ter os dias contados.





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