UM
HOMEM NA CIDADE
Agarro
a madrugada
como
se fosse uma criança
uma
roseira entrelaçada
uma
videira de esperança
tal
qual o corpo da cidade
que
manhã cedo ensaia a dança
de
quem por força da vontade
de
trabalhar nunca se cansa.
Vou
pela rua
desta
lua
que
no meu Tejo acende o cio
vou
por Lisboa maré nua
que
desagua no Rossio.
Eu
sou um homem na cidade
que
manhã cedo acorda e canta
e
por amar a liberdade
com
a cidade se levanta.
Vou
pela estrada
deslumbrada
da
lua cheia de Lisboa
até
que a lua apaixonada
cresça
na vela da canoa.
Sou
a gaivota
que
derrota
todo
o mau tempo no mar alto
eu
sou o homem que transporta
a
maré povo em sobressalto.
E
quando agarro a madrugada
colho
a manhã como uma flor
à
beira mágoa desfolhada
um
malmequer azul na cor.
O
malmequer da liberdade
que
bem me quer como ninguém
o
malmequer desta cidade
que
me quer bem que me quer bem!
Nas
minhas mãos a madrugada
abriu
a flor de Abril também
a
flor sem medo perfumada
com
o aroma que o mar tem
flor
de Lisboa bem amada
que
mal me quis que me quer bem!
JOSÉ
CARLOS ARY DOS SANTOS
Acreditamos ser este um dos poemas mais belos que já se compôs para um
fado, mesmo entre os muitos que o próprio Ary dos Santos escreveu.
Poderia parecer uma incongruência que um poeta tão revolucionário e tão
avesso ao regime salazarista como foi Ary dos Santos, viesse a compor poemas
para o fado, género conhecido por esse mesmo regime como a “canção nacional”.
No entanto, Ary dos Santos soube compreender, como muitos outros poetas,
que o fado, embora utilizado pelo regime ditatorial como um dos seus símbolos
máximos, nada mais era, na verdade, que a manifestação mais pura da alma
lisboeta, do seu povo e da própria cidade de Lisboa enquanto locus cultural. E vão surgindo outros elementos do fado,
embora Ary dos Santos os aborde de forma bem diversa da tradicional: “lua cheia
de Lisboa”; “velada canoa”; “gaivota”, e; “maré”. A lua deslumbra- se e só
então se reflete na vela, enquanto que a gaivota derrota o mau tempo, reflexo
do povo, que como se fosse a maré a subir, invade a cidade em sobressalto,
metáfora incrível da liberdade trazida pela Revolução de 1974.
Possivelmente nenhum outro poeta da sua geração, em nenhum outro momento,
terá sabido encontrar as palavras tão certas para descrever a integração de
um “Portugal que foi” e um “Portugal que vai ser” como Ary dos Santos o fez
nesse poema. E o facto de ser um poema que foi composto para um fado consegue
concretizar de forma ainda mais eficaz essa integração.
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