Em cada ano letivo, este assunto das Praxes faz correr rios de tinta e um rol mais ou menos variado de opiniões. Algumas delas, seguem-se nos vídeos inseridos e no magnífico texto de José Pacheco Pereira:
A ESTUPIDEZ DA PRAXE
Rito de
passagem? Mas que passagem? A única coisa que os estudantes transportam do liceu
para a universidade é a sua carga de ignorância. A cultura juvenil revê-se num
mundo de grosseria e ignorância Se existisse uma colecção de retratos do nosso
atraso, a cena da praxe ocorrida em Macedo de Cavaleiros era um deles.
Saliente-se, aliás, que é apenas uma cena entre muitas que se repetem por todo
o país de Braga a Faro e que esporadicamente são noticiadas, quando há uns
estudantes corajosos que as denunciam, ou quando o abuso é intolerável e
provoca danos.
Ninguém, muito menos o ministério, nem os responsáveis pelas
escolas, pode alegar desconhecimento.Parece que entre as cenas habituais das
praxes aos caloiros, a julgar pela de Macedo de Cavaleiros, existe a prática de
pôr os rapazes e as raparigas a quatro, feitos asno, cabra ou carneiro, mais ou
menos vestidos, mas, pelo menos neste caso, com a roupa interior por fora, a
ter que dizer umas obscenidades e a responder a umas perguntinhas perversas.
Conhecem-se mil e uma variantes, todas boçais, destas práticas.Desta vez, mais
uma vez, a brincadeira correu torta, porque a rapariga seviciada resolveu e bem
queixar-se. O mais espantoso foi ver alguns estudantes, dirigentes académicos
locais, a justificar o que se tinha passado - provavelmente já tinham estado
numa idêntica postura a quatro a fazer de carneiros a balir e gostaram da
experiência - e a dividir o mundo entre os a favor da praxe e
"antipraxe". Sugeriam que alguém poderia evitar as cenas de
humilhação sado-eróticas, com que se entretêm, proclamando-se
"antipraxe", o que teria a penalização de serem excluídos das
"actividades académicas". Gostaria de saber se dinheiros das
instituições universitárias, que vem dos nossos impostos, podem ser canalizados
para grupos de estudantes que excluem das actividades financiadas que patrocinam
os que se recusam a fazer tristes figuras de asno.Rito de passagem? Mas que
passagem? Cada vez mais a única coisa que os estudantes transportam do liceu
para a universidade é a sua carga de ignorância. A cultura juvenil revê-se no
Quim Barreiros, nas peripécias futebolísticas e no Big Brother, num mundo de
grosseria e ignorância em que ler alguma coisa mais do que os jornais
desportivos ou a "Caras" é excepcionalíssimo. Aliás, a praxe e as
claques futebolísticas partilham muita coisa em comum - a violência latente, o
culto pela obscenidade, a demarcação clubística entre "nós" e
"eles".Tenho para mim que um dos sinais de degradação do ensino
universitário nos últimos anos foi a progressiva introdução da praxe.
Subitamente, após uma sadia desaparição da praxe nos anos 70, começou-se de
novo a ver rapazes e raparigas vestidos de uma imitação de padres de gravata, o
chamado "traje académico". Em muitos sítios onde este nunca fora
"tradição", inventaram-se novos "trajes", todos eles
ridículos e um pouco à moda dos bobos da corte das imagens medievais. Só lhes
faltava pôr uns sininhos para parecerem o "coringa" dos baralhos de
cartas. A praxe acompanhou a progressiva perda de qualidade do ensino básico e
secundário, a crescente diminuição da importância da leitura e da oralidade
consistente no ensino, a substituição de critérios de exigência e qualidade
pelo mito do ensino "sedutor", em que as crianças "bons
selvagens" se tornavam "bons" e menos "selvagens", por
uma escola amável e onde não era preciso o esforço.
A praxe mostra que um dos
resultados finais da ideia da escola "soft", das pedagogias não
directivas, foi mais o despertar do "selvagem" do que do
"bom", para desgosto de Rosseau.A praxe estudantil foi sempre uma
marca da mais provinciana universidade portuguesa - Coimbra -e dificilmente se
implantou nas universidades de Lisboa e Porto, onde a população estudantil
vivia em verdadeiras cidades, com vida própria fora do fechado mundo
estudantil. Em Coimbra, uma cidade em grande parte dependente dos estudantes,
dominada pela universidade, povoada por uma multidão de gente vinda do interior
que aí habitava, vivendo em quartos e casas alugadas, o mundo do Palito Métrico
floresceu. Os estudantes praxistas eram activos participantes da boémia da
cidade e cultivavam uma cultura de estúrdia e do vinho, sob a suprema
autoridade do estudante mais cábula, o "dux veteranorum", que obtinha
o lugar na exacta proporção ao número de chumbos que tinha nos exames e aos
anos que demorava a acabar o curso.
A crise de 1969 provocou uma rara união
entre os praxistas e os estudantes mais politizados, com o "dux" a
apoiar a greve e com a suspensão da praxe pelo "luto académico". Este
acto acabou por muitos anos com a praxe em Coimbra e varreu-a das universidades
onde era claramente uma importação e uma imitação - Lisboa e Porto. No Porto,
tenho no meu currículo de dirigente estudantil ter ajudado activamente a acabar
com a ridícula parafernália dos "grelados" e "fitados", com
as cartolas e penduricalhos que passeavam pela cidade durante a Queima das
Fitas. Fui igualmente o autor anónimo, por razões óbvias, de um escrito com
umas teses contra a Queima que circulou abundantemente nas três cidades
universitárias. Nele, contrariamente ao que faziam os estudantes do PCP - que
aceitavam a praxe, apenas achavam que ela devia ser suspensa por razões de
"luto académico" -, combatia a praxe pela mundividência cultural que
lhe estava associada, pelo seu conteúdo machista e marialva, pelo seu
reaccionarismo estético, pela sua infantilização dos estudantes como seres
irresponsáveis, que só serviam para brincadeiras de mau gosto. A Queima era
então no Porto uma sucessão de "saraus", entremeados de
"rallies", touradas, bênçãos, bailes, culminando num cortejo de
carros e piadas que não tinham graça nenhuma e deixavam um rasto de gente
bêbada por toda a cidade. Há poucos anos tive ocasião de observar o mesmo
espectáculo decadente em Coimbra, só que o vinho tinto era substituído por
"shots" e cerveja, não encontrando praticamente um estudante que
estivesse sóbrio no dia do fim da Queima.
Os hábitos da praxe que hoje são um
anacronismo insensato remetem para um mundo corporativo medieval, para uma
época em que as universidades tinham regimento e polícia e em que os estudantes
se defendiam da autoridade dos "lentes", construindo um mundo de
regras autónomas que reproduziam, aliás, o ambiente igualmente claustrofóbico
da universidade "séria". Mas Coimbra nunca foi Heidelberg e o
ambiente fechado, que páginas e páginas de sátira e de crítica já tinham
denunciado, pela pena dos escritores século XIX e XX, não favorecia a liberdade
de espírito, nem qualquer irreverência. Hoje no século XXI, a praxe é um traço
anacrónico que puxa Portugal para um passado de que, mais que tudo, as
universidades o deviam libertar.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
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