A
SERENATA
Uma
noite de lua pálida e gerânios
ele
viria com boca e mão incríveis
tocar
flauta no jardim.
Estou
no começo do meu desespero
e
só vejo dois caminhos:
ou
viro doida ou santa.
Eu
que rejeito e exprobo
o
que não for natural como sangue e veias
descubro
que estou chorando todo dia,
os
cabelos entristecidos,
a
pele assaltada de indecisão.
Quando
ele vier, porque é certo que vem,
de
que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A
lua, os gerânios e ele serão os mesmos
-
só a mulher entre as coisas envelhece.
De
que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como
a fecharei, se não for santa?
ADÉLIA
PRADO
Adélia
Luiza Prado de Freitas nasceu em
1936 em Divinópolis-MG, onde cresceu e se educou. Formou-se em Filosofia e
trabalhou como professora. Em 1971 publicou o livro de poemas “A Lapinha de
Jesus”, junto com Lázaro Barreto. Cinco anos depois foi que publicou sozinha o
seu primeiro livro, Bagagem (1976), revelando uma artista de extrema
originalidade e lirismo. Publicou depois “Coração Disparado” (1978), coletânea
que trouxe a consagração merecida, trazendo-lhe o Prémio Jabuti, da Câmara
Brasileira do Livro de São Paulo.
Os
seus poemas, contos e romances registam o cotidiano das pequenas cidades do
interior, com fortes manifestações de religiosidade. “Lá estão as comadres, as
santas missões, as formigas pretas, o angu, as tanajuras, as pessoas na sombra
com faca e laranja”, afirma Afonso Romano no prefácio da coletânea “Coração
Disparado”. Adélia faz poesia como quem está com o caderno ao lado do fogão,
dizendo verdades que não foram ditas pelos “poetas” até então. Isto ela faz num
tom mágico e fantástico, recriando a vida do interior mineiro por meio de uma
linguagem inovadoramente feminina, isto é, ela não repete a mesma linguagem
usada pelos poetas modernistas, nem os seus poemas versam sobre imagens
desgastadas como “noite-canto-solidão”.
O
grande mérito de Adélia Prado é que ela explora temas como a família, elemento
praticamente descartado pelos poetas brasileiros, que preferem falar nas
amantes, quando muito em noivos e noivas. Ela valoriza a vida nas menores coisas,
como os afazeres da casa, até as mais comuns, como a gravidez no poema
“Esperando Sarinha”, que revelam os mais simples desejos e expectativas de uma
gestante.
Além
disso, incorpora na sua obra a presença da mulher concreta em si mesma, capaz
de revelar um erotismo ausente na “poesia feminina” convencional. Desta forma,
revela uma mulher que vai além das ideologias, dos preconceitos, destemida a
ponto de descartar a maneira masculina de olhar o mundo e os clichés da
ideologia literária e social.
Alguns
de seus poemas dialogam com os de Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Drummond,
mas só para os marcar de uma maneira surpreendentemente inovadora. O seu primeiro
livro começa com o poema “Com Licença Poética”, onde ela retoma pelo avesso o
gauche de Drummond. Outra releitura bastante interessante é a que ela faz do
poema “No meio do caminho”, também de Drummond: “Achei engraçado quando o poeta
tropeçou na pedra / Eu tropeço na lei de jugo suave: ‘Amai-vos’”.
A
poesia de Adélia Prado revela uma constante alegria de estar viva, mesmo diante
de tantas adversidades. Até mesmo os palavrões que ela usa nos seus textos
aparecem com tanta naturalidade, que quase passam despercebidos. E aqui cabe
uma consideração importante: o modernismo “dessacralizou” apenas a gramática,
mas a linguagem continuou sendo a mesma “casta e burguesa” de sempre.
Inspirado neste poema, Martha Medeiros escreveu o livro "Doidas e Santas", que posteriormente adaptou para o teatro.
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