LAMENTO PARA A LÍNGUA
PORTUGUESA
Não és mais do que as outras,
mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se
imagina
que alguma vez uma outra língua
possa
pôr-te incolor, ou inodora,
insossa,
ser remédio brutal, mera
aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma
fossa,
ou dar-nos vida nova e
repentina.
mas é o teu país que te
destroça,
o teu próprio país quer-te
esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te
assassina.
mostras por ti o que lhe vais
fazer:
vai-se por cá mingando e
desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu
poder
enquanto o mundo vai de nós
fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no
entender,
mas sem que a desavença nos
importe
nós já falamos nem sequer
fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o
desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a
morte,
o nó que faz com ela e que
entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra
sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da
verdade,
e que a ti nos prendesse melhor
grade.
bem que ao longo do tempo
ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus
cristais,
e entre gentes remotas
descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas
mais,
perdidas no enredar das nossas
vias
por desvairados, lúgubres
sinais,
mísera sorte, estranha
condição,
mas cá e lá do que eras tu te
esvais,
por ser combate de armas
desiguais.
matam-te a casa, a escola, a
profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a
ciranda
de violência alvar que não
abranda
entre rádios, jornais,
televisão.
e toda a gente o diz, mesmo
essa que anda
por tal degradação tão mais
feliz
que o repete por luxo e não
comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos
panda
cheia do podre cheiro a que
tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais
subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do
conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem
quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver
quotidiano,
de ilusões e silêncios,
desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a
ano,
passarem aves, ceifas,
estações,
o trabalho, o sossego, o tempo
insano
do sobressalto a vir a todo o
pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios,
cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a
percorrer,
e arados, atrelagens e
veleiros,
pedacinhos de conchas, verde
jade,
doces luminescências e
luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e
liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de
manter:
o teu próprio domínio foi
proscrito,
laje de lousa gasta em que
algum giz
se esborratou informe em
borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o
mito
de haver milhões que te uivam
triunfantes
na raiva e na oração, no amor,
no grito
de desespero, mas foi noutro
atrito
que tu partiste até as próprias
jantes
nos estradões da história:
estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus
falantes
na terra em que nasceste, eu
acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como
dantes,
quer murmures, escrevas, fales,
cantes,
mas apesar de tudo ainda és
nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua
possa
pôr-te incolor, ou inodora,
insossa,
ser remédio brutal, vãs
aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma
fossa,
ou dar-nos vidas novas
repentinas.
enredada em vilezas, ódios,
troça,
no teu próprio país te
contaminas
e é dele essa miséria que te
roça.
mas com o que te resta me
iluminas.
VASCO GRAÇA MOURA,
in "Antologia dos Sessenta
Anos"
(1942-2014)
Portugal
(Ensaísta/Tradutor/Político)
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