sexta-feira, outubro 14, 2011

ANTÓNIO GEDEÃO (RÓMULO DE CARVALHO, 1906-1997) - Apontamento de Poesia Contemporânea (Parte III)




Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança...


Poeta, professor e historiador da ciência portuguesa, António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, nasceu em Lisboa a 24 de novembro de 1906 e também em Lisboa morreu em19 de fevereiro de 1997. Neste mesmo ano, o dia do seu nascimento foi escolhido em Portugal como o Dia Nacional da Cultura Científica.

António Gedeão

Concluíu, na cidade do Porto, o curso de Ciências Fisico-Químicas, exercendo depois a actividade de docente. Teve um papel importante na divulgação de estudos científicos, colaborando em revistas da especialidade e organizando obras no campo da história das ciências e das instituições, como a Actividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos séculos XVIII e XIX. Publicou ainda outros estudos, com destaque para a História da Fundação do Real Colégio dos Nobres de Lisboa (1959), o sentido Científico de Bocage (1965), e Relações entre Portugal e a Rússia no séc XVIII (1979).

Revelou-se como poeta apenas em 1956, com a obra Movimento Perpétuo. A esta viriam juntar-se outras obras, como Teatro do Mundo (1958), Máquina do Fogo, Poema de Galileu (1964), Linhas de Força (1967) e ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990). Na sua poesia, reunida também em Poesias Completas (1964), as fontes de inspiração são heterogénias e equilibradas de modo original pelo homem que, com um rigor científico, nos comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da solidão humana, muitas vezes com surpreendente ironia.


Compilação da Obra de António Gedeão





Alguns dos seus textos poéticos foram aproveitados para a música que, à época da revolução do 25 de abril em Portugal, foi intitulada música de intervenção.

De notar que esta corrente musical, não faz de António Gedeão um poeta chamado de intervenção, integrado nesse movimento social, tal como veio a acontecer com outros poetas da altura.

Em 1963 publicou a peça de teatro RTX 78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de ficção, A Poltrona e Outras Novelas (1973)


Na data do seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago da Espada.


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Poemas de António Gedeão:

Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão correta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso, 
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara negra, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
pssarola voadora, 
pára raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto forno, geradora,
Cisão do átomo, radar,
ultra som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

Lágrima de Preta:
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima,
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:


nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio

Fala do Homem Nascido:
(chega à beira da cena, e diz:)
Venho da terra assombrada
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do futuro do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

Todo o Tempo é de Poesia:
Todo o tempo é de poesia
Desde a manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.
Todo o tempo é de poesia.
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.

"PEDRA FILOSOFAL":

1 comentário:

peonia disse...

António Gedeão, o cientista que soube entrosar a química com a poesia. Gostei do registo da Pedra Filosofal e da Lágrima de Preta. É bom lembrar que somos todos iguais nas "lágrimas" e nos "sonhos", não é? Beijinhos

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