segunda-feira, outubro 31, 2011

MIGUEL TORGA ( ADOLFO COELHO DA ROCHA,1907-1995) - Apontamento de Poesia Contemporânea (Parte V)



Nasci subversivo.
A começar por mim, meu principal
motivo de insatisfação...(Orfeu Rebelde-1958)



Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Coelho da Rocha, nasceu em São Martinho da Anta a 12 de agosto de 1907, e faleceu em Coimbra a 17 de janeiro de 1955. Destacou-se como poeta, contista e memoralista, mas também escreveu romances, peças de teatro e ensaios.

Terras de Trás-os-Montes, por onde passeava Miguel Torga

Aos 27 anos, Adolfo Correia da Rocha cria o pseudónimo "Miguel" e "Torga". Miguel em homenagem a dois grandes vultos da cultura ibérica: Miguel Cervantes e Miguel de Unamuno. Já Torga é uma planta bravia da montanha, que deita raízes fortes sob a aridez da rocha, de flor branca, arroxeada ou cor de vinho, com um caule incrivelmente rectilíneo. É esta planta, a torga, plantada em honra do poeta, que acompanha a singela sepultura de Miguel Torga, uma campa rasa, em São Martinho da Anta. Miguel Torga veio a falecer em consequência de um cancro que pôs termo à sua atividade literária a partir do ano de 1994.

Proveniente de uma família humilde, Miguel Torga teve uma infância rural dura, que lhe deu a conhecer a realidade do campo, sem bucolismos, feita do trabalho árduo e contínuo. Após uma breve passagem pelo seminário de Lamego, emigrou com 13 anos para o Brasil, onde durante cinco anos trabalhou na fazenda de um tio, em Minas Gerais, como cortador de relva, apanhador de café, vaqueiro e caçador de cobras. De regresso a Portugal, em 1925, concluiu o ensino liceal  e frequentou em Coimbra o curso de Medicina, que terminou em 1933.

Casa onde nasceu Miguel Torga, São Martinho da Anta.

Exerceu a profissão de médico em São Martinho da Anta e noutras localidades do país, fixando-se definitivamente em Coimbra, como otorrinolaringologista, em 1941. Ligado inicialmente ao grupo da revista Presença, desligou-se dele em 1930, fundando nesse mesmo ano, com Branquinho da Fonseca (outro dissidente), a Sinal, da qual apenas saiu um número. Em 1936, lançou outra revista, Manifesto, também de curta duração.

A sua saída da Presença reflete uma característica fundamental da sua personalidade literária, uma individualidade veemente e intransigente, que o manteve afastado, por toda a vida, de escolas literárias e mesmo do contacto com os círculos culturais do meio português. A esta intensa consciência individual aliou-se, no entanto, uma profunda afirmação da sua pertença à natureza humana, com que se solidariza na oposição a todas as forças que oprimam a energia viva e a dignidade do homem, sejam elas as tiranias políticas ou o próprio Deus.

Memorial a Miguel Torga, em Coimbra

Miguel Torga, tendo como homem a experiência dos sofrimentos da emigração e da vida rural, do contacto com a miséria e com a morte, tornou-se o poeta do mundo rural, das forças telúricas, ancestrais, que animam o instinto humano na luta dramática contra as leis que o aprisionam. Nessa revolta consiste a missão do poeta, que se afirma tanto na violência com que acusa a tirania divina e terrestre, como na ternura franciscana que estende, de forma vibrante, a todas as criaturas no seu sofrimento. Mas essa revolta, por outro lado, não corresponde a uma falta de religião ou recusa de transcendência.

A sua obra, recheada de simbologia bíblica, encontra-se, antes, imersa num sentido divino que transfigura a natureza e dignifica o homem no seu desafio ou no seu desprezo face ao divino. A ligação à terra, à região natal, a Portugal, à própria Península Ibérica e às suas gentes, é outra constante dos textos do autor. Ela justifica o profundo conhecimento que Torga procurou ter de Portugal e Espanha, unidos no conceito de uma Ibéria comum, pela rudeza e pobreza dos meios naturais, pelo movimento de expansão e opressões da história, e por certas características humanas definidoras da sua personalidade. A intervenção cívica de Miguel Torga, na oposição ao Estado Novo e na denúncia dos crimes da guerra civil espanhola e de Franco,
valeu-lhe a apreensão de algumas das suas obras pela censura e, mesmo, a prisão pela polícia política portuguesa.

Sepultura  do poeta, em São Martinho da Anta,
ladeada pela planta homónima de Miguel Torga.

Contista exímio, romancista, ensaísta, dramaturgo, autor de mais de 50 obras publicadas desde os 21 anos, estreou-se em 1928 com o volume de poesia Ansiedade. Também, em poesia, publicou, entre outras obras, Rampa (1930), O Outro Livro de Job (1936), Lamentação (1943), Nihil Sibi (1948), Cântico do Homem (1950), Alguns Poemas Ibéricos (1952), Penas do Purgatório (1954) e Orfeu Rebelde (1954).Na ficção em prosa, escreveu Pão Àzimo (1931), Criação do Mundo. Os Dois Primeiros Dias (1937), obra de fundo autobiográfico, continuada em O Terceiro Dia da Criação do Mundo (138), O Quarto Dia da Criação do Mundo (1939), O Quinto Dia da Criação do Mundo (1974), O Sexto Dia da Criação do Mundo (1981), Bichos (1940), Contos da Montanha(1941), O Senhor Ventura (1943, romance), Novos Contos da Montanha (1944), Vindima (1945), e Fogo Preso (1976).

É ainda autor de peças de teatro (Terra Firme e Mar, 1941; O Paraíso,1949; e Sinfonia, poema dramático, 1947) de volumes de impressões de viagens (Portugal, 1950; Traço de União, 1955) e de um Diário em dezasseis volumes, publicado entre 1941 e 1944. Notável pela sua técnica narrativa no conto, pela expressividade da sua linguagem, frequentemente de cunho popular, mas de uma força clássica, fruto de um trabalho intenso da palavra, conseguiu conferir aos seus textos um ritmo vigoroso e original, a que associa um uso da imagem extremamente vivo e sugestivo.

Por várias vezes premiado, nacional e internacionalmente, foram-lhe atribuídos, entre outros, o Prémio Diário de Notícias (1969), o Prémio Internacional da Poesia (1977), o Prémio Montaigne (1981), o Prémio Camões (1989), o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores (1992) e o Prémio Crítica,  consagrando a sua obra (1993). Em 2000, é publicado Poesia Completa. 

Miguel Torga foi, ainda, proposto várias vezes para o Nobel da Literatura.
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Algumas citações de Miguel Torga:

"Os homens são como as obras de arte: é preciso que se não entenda tudo delas duma só vez." (Diário,1943).

"O mundo é uma realidade universal, desarticulada em biliões de realidades individuais" (Diário, 1938).

"Quanto maior é um romance ou um poema, mais a sua magia nos separa da mão de barro que o escreveu" (Diário, 1940).

"Nas duas grandes horas da vida  - o nascer e o morrer - o homem bebe sozinho o seu cálice. No trajeto entre os dois pólos, acobardado pela maior consciência da espessura da bruma, arregimenta amigos e companheiros. Mas a sua unidade é ele. Mesmo que consiga ter à volta a maior multidão - vai só." (Diário, 1946).
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Poemas de Miguel Torga:

Liberdade
1-Liberdade
2- Quase um Poema de Amor
3-Nau Catrineta
4-Aqui, Diante de Mim
- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.

- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
                          ( In DiárioXII)

Quase um poema de amor:
Há muito tempo já não escrevo um poema
De amor.
E é o que sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
            (In DiárioV)

Nau Catrineta:
"Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar.
Ouvi, agora Senhores,
Uma história de pasmar..."
A Mãe correu à varanda,
Bem longe de imaginar
Que o alarme desejado
Vinha dum cego a cantar:
"Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar..."
A Mãe abriu num soluço
O coração a sangrar,
Porque a sola era tão rija
Que a não podiam tragar...
"Deitam sortes à ventura
Qual se havia de matar".
(A Mãe tinha pão na arca
E não lho podia dar!)
"Logo foi cair a sorte..."
(Que sorte tão singular!).
O gageiro olhava, olhava,
Mas só via céu e mar...
"Alvíssaras,Capitão..."
E o vento a enrodilhar
A voz do homem da gávea
Na do ceguinho a cantar!
"A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar..."
A Mãe que nada podia,
Já só podia rezar...
"Deu um estoiro o demónio,
Acalmaram vento e mar."
E quando o cego acabou
Estavam em terra a varar...
                      

Aqui,diante de mim:
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima.
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
                  (In Livro das Horas)




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