“Brilhante”.
“Príncipe da Medicina”. “Fascinado pelo mistério da vida”. “Grande
intelectual”. “Grande português”. “Um dos melhores”. Assim era João Lobo
Antunes, nas palavras de quem privou com ele. O neurocirurgião morreu, esta
quinta-feira, aos 72 anos, vítima de cancro. Uma doença que há mais de um ano o
tinha obrigado a afastar-se do bloco operatório. Era, desde 2015, presidente do
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).
Segundo
de seis filhos, João Lobo Antunes nasceu numa família de médicos. Em entrevista
a Maria Leonor Nunes e ao Jornal de Letras, em outubro de 2015, recordou que
foi o pai, neurologista, quem mais o encaminhou na profissão. “Não há dúvida
que teve importância, o meu pai. De seis filhos rapazes, três foram para
Medicina, três para a área das neurociências. Vivia-se o cérebro naquela casa.”
Mas
João Lobo Antunes esteve para fazer marcha atrás. “A certa altura pensei em ir
para cardiologia porque achava a mais a matemática das especialidades. Por
outro lado, desapontava-me a ineficácia, a impotência terapêutica da
neurologia. Isto há 50 anos.”
Outra
razão que quase o levou a afastar-se da neurocirurgia foram as mãos. Isso
mesmo. Lobo Antunes confessou ao Jornal de Letras ser pouco “dotado” num ofício
que exige “elegância”. “Desenhava com algum talento (na infância), modelava,
esculpia, mas não era dotado de mãos habilidosas. Era, portanto, um enorme
desafio ir para neurocirurgia e perguntava-me mesmo se seria capaz de usar as
mãos para operar. Curiosamente, quando opero, do ponto de vista técnico e
gestual, estou mais próximo do pintor, o bisturi mais perto do pincel do que da
chave de fendas. (…) A pouco e pouco, consegui dominar bem as duas mãos. São a
guitarra e a viola. E comecei a ter um prazer quase sensual no ato da cirurgia
e um conceito estético“, descreveu.
Dedicou
a sua carreira principalmente ao estudo do hipotálamo e da hipófise. O cérebro
era para ele “sagrado” e, como tal, devia ser tocado “com rigor e especial
delicadeza”. Nos Estados Unidos aprendeu a doutrina de tirar um tumor sem tocar
no cérebro, o que nem sempre era possível. Lobo Antunes foi o primeiro médico a
implantar o olho eletrónico num cego, em 1983. Depois dele, seguiram-se 15
operações do género, permitindo aos doentes ver algumas formas e distinguir
certas cores.
“Foi
uma das figuras que mais marcou a saúde em Portugal, a ciência e a investigação
biomédica”, realçou o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, após a
notícia da morte do médico, com quem trabalhou no Hospital de Santa Maria, em
Lisboa. “Foi um verdadeiro visionário. Um dos maiores do nosso tempo.”
Lobo
Antunes nunca esqueceu os seus pacientes e as histórias deles. E nunca
abandonou a questão da ética, tendo chegado a presidente do CNECV em 2015. Por
várias vezes falou publicamente sobre a dignidade da vida humana e debateu
alguns dos dilemas do final da vida e da morte. Quando a polémica eutanásia
começou a ser falada, ele recusou a ideia de um referendo e preferiu sempre
focar-se na importância dos cuidados paliativos, antes de se pronunciar sobre a
eutanásia.
Uma
vida entre batalhas vencidas e perdidas
"Tenho
refletido muito sobre o que foi a minha vida e diria que se houve guerra foi
vivida com leveza. Perdi muitas batalhas, como médico e cirurgião. Mas ganhei
mais do que perdi. Devo dizer que sempre com uma estratégia cautelosa. Nunca me
meti numa guerra que não achasse que tinha possibilidade de vencer. Ou seja,
fui sempre pragmático, apesar dos meus devaneios literários ou filosóficos. E
tive muitas quando voltei a Portugal.”
João Lobo Antunes
Jornal
de Letras (2015)
O
futuro da medicina
Não
sei o que nos espera, mas sei o que me preocupa: é que a medicina, empolgada
pela ciência, seduzida pela tecnologia e atordoada pela burocracia, apague a
sua face humana e ignore a individualidade única de cada pessoa que sofre, pois
embora se inventem cada vez mais modos de tratar, não se descobriu ainda a
forma de aliviar o sofrimento sem empatia ou compaixão.”
João Lobo Antunes
Obra
Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
O
balanço final
A
doença convida ao exame da vida, provavelmente a única circunstância em que
chegamos próximo da análise lúcida do caminho percorrido. Então regressam à
cena os actores esquecidos da nossa biografia. Voltamos a viver os momentos em
que subimos mais alto do que alguma vez aspirámos, ou descemos àquela
profundidade em que a vergonha nos perdera. Ouvimos novamente as palavras que
deveríamos ter contido ou então, pelo contrário, as que ficaram por dizer.
Contabilizamos o balanço final e escrevemos, com um sorriso e um travo de
amargura, o último currículo.”
Obra
Ouvir com outros olhos (Gradiva) – 2015
Pensamentos emblemáticos, contra todo o esquecimento. Para serem pensados, rezados, seguidos e vividos...
Sem comentários:
Enviar um comentário