(...)Desgraça quase tão grande foi o desaparecimento, melhor dizendo, a fuga - da Gualdina, flor da freguesia, a magnólia ambulante de Medronhais, a coisinha mais sensual que a terra vira desde a partida da professora Fátima. Na altura a Gualdina andaria pelos seus 17 anos, mais cinco do que eu, e toda ela rebentava de excessos dentro das roupas que usava sempre justas. Não havia ali uma linha recta que se recomendasse: era tudo curvas e requebros, ogivas e arcos abatidos. Caminhava pela Rua Direita como se ondulasse, como se o simples esforço de trespassar o ar com o peito levantado para os céus lhe requeresse um exercício de contorção em que, por força da anatomia, se tivera que tornar especialista.
Quando ela passava, o ar ficava mais expesso da respiração ofegante dos homens e o vidro da montra da barbearia do Sr. Otávio humedecida por dentro, quando todas as cabeças se viravam lá para fora, e no silêncio pesado da barbearia, apenas se escutava a imprecação do Albino Facas, murmurando entre dentes: "Boieng!"
Era fatal que alguém, um dia, sem se conseguir conter mais, haveria de violar a Gualdina, a gosto ou à força, e tudo aquilo acabaria em tragédia. Eu próprio sonhei várias vezes com isso - sonhos húmidos e nocturnos que contrastavam com a secura que ela me deixava na boca, de cada vez que nos cruzávamos e eu apenas dizia:
- Bom dia, Gualdina!
- Bom dia, miúdo.
- Estás muito bonita hoje!
E ela parava e sorria, dando de ombros:
- Hoje? Ó puto, cresce depressa!
Quem me dera!
MIGUEL SOUSA TAVARES,
in " Madrugada Suja"
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