30 de abril
Manhã cedo. O cego André segue pelo carreirinho entre os coqueiros, em direção à cadeia da PIDE. Leva na mão a chave da prisão. A alegria lhe abalroa o peito. Seus irmãos se libertariam de vez daquela grade. Seria aquilo coisa de acreditar?
(...)O cego fica à porta como se lhe doesse entrar. Parece triste como água num poço. Uma mão sobre o ombro o assusta. Reconhece o rosto. É um ex-preso que entende ver, em último relance, o lugar onde tanto sofrera.
- Mataram Lourenço?
- Nós matámos o pide preto.
- Então quem matou o branco?
- Cada qual mata o da sua raça.
E o preso, sem mais, se extingue no escuro do corredor. O cego fica só, com essa dúvida moendo-lhe a mente. Quem matara Lourenço de Castro? Por momentos, naquele silêncio de tumba, lhe pareceu reconhecer um aroma familiar. É aroma de mulher. Num instante, as memórias se avalancham. Passam Custódio, Marcelino, Dona Graça, os idos e revindos, cores antigas que agora se revertiam em sons. Das lembranças emerge uma indefinível voz que murmura o que ele, no momento, deve executar.
André Tchuvisco vai à arrecadação da prisão, traz uma lata de tinta branca e um velho pincel. E com amplos gestos ele espalha demãos sobre a parede. A cada pincelada, a paisagem do quarto se lava. Não há sangue, não há desordem. Não é só o morto que se esvai: a própria morte desvanece. O cego sente que os seus olhos se tornam mais inundáveis. Como se abrisse um imenso pátio onde toda a luz se espraiasse. E sente que a prisão, a cada pincelada, se vai dissolvendo, a pontos de total inexistência. Como se o pincel que empunhasse fosse areia, na mão do vento, apagando pegadas no deserto.
MIA COUTO
in "Vinte e zinco",
Prémio Camões 2013
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