quarta-feira, agosto 27, 2014

PELA NOITE, COM FEDERICO GARCÍA LORCA: "SANGUE DERRAMADO-Pranto por Ignácio Sánchez Mejías"





O SANGUE DERRAMADO


Não quero vê-lo!

Dize à lua que venha,
que não quero ver o sangue
De Ignacio sobre a areia.

Não quero vê-lo!

A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas,
e a praça cinza do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Não quero vê-lo!
Que se me queima a recordação.
Avisai aos jasmins
com sua brancura pequena!

Não quero vê-lo!

A vaca do velho mundo
passava a língua triste
sobre um focinho de sangues
derramados sobre a areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Não quero vê-lo!

Pelos degraus sobre Ignacio
com toda sua morte às costas.
Buscava o amanhecer,
e o amanhecer não era.
Busca o seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Buscava o seu formoso corpo
E encontrou seu sangue aberto.
Não me digais que o veja!
Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força;
esse jorro que ilumina
os palanques e se verte
sobre a pelúcia e o couro
de multidão sedenta.
Quem grita que eu apareça?
Não me digais que o veja!

Não se fecharam seus olhos
quando viu os chifres perto,
mas as mães terríveis
levantaram a cabeça.
E através das manadas,
houve um ar de vozes secretas
que gritavam a touros celestes,
maiorais de pálida névoa.
Não houve príncipe em Sevilha
que comparar-se-lhe possa,
nem espada como a sua espada
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
sua maravilhosa força,
e como um torso de mármore
sua marcada prudência.
Um ar de Roma andaluza
lhe dourava a cabeça
onde seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.

Que grande toureiro na praça!
Que grande serrano na serra!
Quão brando com as espigas!
Quão duro com as esporas!
Quão terno com o rocio!
Quão deslumbrante na feira!
Quão tremendo com as últimas
bandarilhas tenebrosas!

Porém já dorme sem fim.
Já os musgos e já a erva
abrem como dedos seguros
a flor de sua caveira.
E o sangue já vem cantando:
cantando por marismas e pradarias,
resvalando por chifres enregelados,
vacilando sem alma pela névoa,
tropeçando com cascos aos milhares
como uma longa, escura, triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir das estrelas.
Oh! branco muro de Espanha!
Oh! negro touro de pena!
Oh! sangue duro de Ignacio!
Oh! rouxinol de suas veias!
Não.
Não quero vê-lo!
Não há cálice que o contenha,
não há andorinhas que o bebam,
não há escarcha de luz que o esfrie,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que o cubra de prata.
Não.
Eu não quero vê-lo!!


FEDERICO GARCÍA LORCA,
Pranto por Ignácio Sánchez Mejías



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