CARTA
(digo dos que se ditam:
a minha defesa
são os vossos punhais)
Descobri a vossa intenção:
decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras
mortas. Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher
de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a
verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que
mãos fizeram este pão?
O tempo, por vezes, morria de o
não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam
para me curar. Eram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram
mãos de um corpo que ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar
a água e nela me deixar tombar. Tecido que escapava da mais bela das lavadeiras
eu ia pelo rio, a corrente insuflando-me e eu deixando-me arrastar com fingida
contrariedade.
MIA COUTO, in 'Raiz de Orvalho
Outubro 1981'
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