«Apontas para o rosto
sarcástico do sol de Inverno
E disparas. Há tantos meses que
não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de
ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa.
Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que
disparas, não é contra o Inverno,
Nem sequer contra o insólito,
contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-nos tudo à cara,
Europa: bombas, palavras, relatórios de contas.
Podes até atirar-nos à cara um
deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem
gravatas. Os teus filhos querem paz.
Os teus filhos não querem que
lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove –
reparaste?
A terra está seca. Nem
abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu
continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem
paga.
Mas os teus filhos têm fome,
têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que
lhes cantes uma canção, que os vás adormecer.
Eu acreditei em ti e tu
roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é
apenas porque, contrários ao teu gesto,
Nós não queremos disparar.»
FILIPA LEAL
Poema integrado
no poema em cadeia "Renshi.eu
- um diálogo europeu em versos"
do
Festival de Poesia de Berlim.
Numa
Europa dividida e enfraquecida, a dois passos das suas escolhas fundamentais,
pareceu-me mais do que oportuno recordar este belo poema, um projecto seu, numa
brilhante participação da jornalista Filipa Leal. O poema final, não o
conhecemos. Certamente só o tempo o saberá.
“RENSHI.EU”
é um poema em cadeia escrito por 28 poetas de 28 países europeus, que abordam
de forma literária as questões do presente e futuro da Europa. Cada poeta
começa a escrever a partir do último verso do poema anterior, dando origem a a
uma obra gigantesca que espelha uma miríade de olhares e referências culturais.
Este poema foi lido pela autora em português, na sessão de apresentação da obra
conjunta, na Akademie der Künste de Berlim.
O
poema em cadeia começou a ser escrito na Grécia, país europeu mais afectado
pela crise das dívidas soberanas, mas também a pátria da democracia e da
cultura europeias, pelo lírico Yannis Stiggas. Depois de ser prosseguido pelos
outros poetas europeus, em grupos de cinco ou seis autores, “terá também uma
conclusão grega”, de novo a cargo de Yannis Stiggas.
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