domingo, julho 01, 2012

MIA COUTO (5 de Julho de 1955) - Apontamento de Poesia Contemporânea (Parte XI)







O morto,
abre a terra: encontra um ventre

O vivo
abre a terra: descobre um seio.


Mia Couto, de nome António Emílio Leite Couto, é um escritor e biólogo moçambicano. Nasceu na cidade da cidade da Beira, em Moçambique em 1955 e é filho de emigrantes portugueses chegados a este país em meados do século XX. Publicou os primeiros poemas no jornal "Notícias da Beira", com 14 anos. Em 1972, deixou a Beira e partiu para Lourenço Marques (atual Maputo), para estudar Medicina. A partir de 1974, começou a fazer jornalismo, tal como o pai. Com a independência de Moçambique, tornou-se diretor da Agência de informação de Moçambique (AIM). Dirigiu também a revista semanal "Tempo" e o jornal "Notícias de Maputo".


Mia Couto e a obra "Estórias Abensonhadas"

Em 1985 formou-se em Biologia pela Universidade de Eduardo Mondlane. Foi também durante os anos 80 que publicou os primeiros livros de contos. Estreou-se em 1983, com um livro de poesia "Raiz de Orvalho", que inclui poemas contra a propaganda marxista militante, e só publicado em Portugal em 1999. 

Depois publicou dois livros de contos "Vozes Anoitecidas" (1986) e "Cada Homem é uma Raça" (1990). Em 1992 publicou o seu primeiro romance, "Terra Sonâmbula". A partir de então, apesar de conciliar as profissões de professor e biólogo, nunca mais deixou a escrita e tornou-se um dos nomes moçambicanos mais traduzidos, em 22 países. Espanhol, francês, italiano, alemão, sueco, norueguês e holandês são algumas línguas.


Livro de poemas "Raiz de Orvalho"

Em muitas das suas obras, Mia Couto tenta recriar a língua portuguesa com uma influência moçambicana, utilizando o léxico de várias regiões do país e produzindo um novo modelo de narrativa africana. "Terra Sonâmbula" (1992), o seu primeiro romance, ganhou o Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995, e foi considerado como um dos doze livros africanos do século XX, no Zimbabué. Em 2007 foi entrevistado pela revista "Isto É". Fundou uma empresa de estudos ambientais da qual é colaborador.

Outros livros de Mia Couto: "Histórias Abensonhadas" (1994), "A Varanda do Frangipani" (1996), "Vinte e Zinco" (1999), "Contos do Nascer da Terra" (1997), "Mar me quer" (2000), "Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos" (2001), "O Gato e o Escuro" (2001), "O Último Voo do Flamingo" (2000), "Um Rio Chamado Tempo", "Uma Casa Chamada Terra" (2002). "O Fio das Missangas" (2004) é o seu último livro de contos.

Mia Couto é aquilo que se pode entender por um "escritor da terra". Precisamente porque, na sua expressão absolutamente única, originalíssima, escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua relação umbilical com a terra.

Mia Couto e o ator Jackson, em Salvador, relembram Jorge Amado

A sua linguagem extremamente rica  e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. 

Cada palavra inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, e entendemo-la como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar.   

As imagens de Mia Couto evocam necessariamente em nós a intuição de mundos fantásticos e um pouco surrealistas em certa medida, subjacentes ao mundo em que vivemos, que nos envolvem numa ambiência de sonho terna e pacífica - o mundo vivo das histórias. 

"Terra Sonâmbula"


Pode dizer-se, creio, que Mia Couto se destaca como brilhante contador de histórias. Através delas, consegue manter-nos em contacto com um pulsar interno que coincide com a própria respiração da terra. Em 1999 foi vencedor do Prémio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra, um dos mais conceituados prémios da literatura portuguesa. 


E em 2001, a Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu-lhe o Prémio Literário Mário António (que distingue obras e autores dos países africanos lusófonos e de Timor-Leste), por "O Último Voo do Flamingo" (2000).






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POEMAS DE MIA COUTO:

Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda é o meu fogo
1- Pergunta-me
2- Para Ti
3- Palavra Que Desnudo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
Se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer


Para ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que falhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida

Palavra que desnudo
Entre a asa e o voo
nos trocámos
como a doçura e o fruto
nos unimos
num mesmo corpo de cinza 
nos consumimos
e por isso
quando te recordo
percorro a imperceptível
fronteira do meu corpo
e sangro
nos teus flancos doloridos
Tu és o encoberto lado
da palavra que desnudo
1- Sotaque Da Terra
2- Quissico
3- O Amor, Meu Amor
4- Identidade


O amor, Meu Amor
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meu dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
Menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, in "idades cidades divindades"


Identidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo porque luto nasço

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"








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