domingo, julho 24, 2016

PELA NOITE, COM HERBERTO HELDER: "TRÍPTICO"




TRÍPTICO


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.


Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.


Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
 que te procuram.


HERBERTO HELDER
(excerto do poema «Tríptico», publicado em A Colher na Boca, 1961)
“Poesia Toda”
Lisboa, Assírio & Alvim, 1990



Herberto Helder nasceu no Funchal, na ilha da Madeira, em 1930, no seio de uma família de origem judaica. Em 1946, veio para Lisboa, onde terminou o liceu. Depois de uma rápida passagem pelo curso de Direito, em Coimbra, frequentou durante três anos a Faculdade de Letras de Lisboa.

Em 1955, após um breve regresso à Madeira, Herberto Helder regressa de novo em Lisboa e frequentando o Café Gelo, ao lado de Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo, colaborando em várias publicações literárias. Publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita, em 1958.
Ao longo dos anos, Herberto Helder desempenhou várias profissões e viajou para vários países estrangeiros. Personagem discretíssima, foi distinguido em 1983 com o Prémio de Poesia do Pen Club Português, pelo livro A Colher na Boca. Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pelo conjunto da sua obra, distinção que recusou.

Algumas obras do autor:

Poesia:

O Amor em Visita (1958)
A Colher na Boca (1961)
Poemacto (1961)
O Bebedor Nocturno (1968)
Poesia Toda (várias actualizações desde 1981)
A Cabeça entre as Mãos (1982)
Última Ciência (1988)
Do Mundo (1994)
Ou o Poema Contínuo (2001)

Ficção:

Os Passos em Volta (1963)





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