DORME, MEU AMOR
Dorme, meu amor, que o
mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui,
de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e
sossega – o pior já passou
há muito tempo; e o vento
amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo.
Dorme, meu amor –
a morte está deitada sob
o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como
um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada
temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me –
eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que
tenho mais medo. Fecha os olhos
agora e sossega – a porta
está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim
devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao
caminho. Por isso, dorme,
meu amor, larga a
tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o
silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada
nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos –
a noite é um poema
que conheço de cor e vou
cantar-to até adormeceres.
MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
(O Canto do Vento nos
Ciprestes)
Maria do Rosário
Pedreira, natural de Lisboa, nasceu em 1959. Fez a sua estreia na literatura em
1996, com o livro intitulado "A casa e o
cheiro dos livros", cuja receção calorosa fez com que logo se esgotasse a
primeira edição. Seu segundo livro, "O Canto
do Vento nos Ciprestes", obteve a mesma ovação por parte da crítica. Como
escritora tem já vários trabalhos publicados de ficção, poesia, ensaio, crónicas
e literatura juvenil.
O seu primeiro livro, "A casa e o cheiro dos livros", revela-se como uma
espécie de poética do espaço, dos interiores das casas. No segundo livro, "O Canto do Vento nos Ciprestes", a
poetisa pratica uma retórica que recorda os “ultra-românticos”, na medida em
que reveste a expressão dos sentimentos de uma eloquência inesperada. Trata-se
de uma poesia que não se contenta em falar de amor, privilegia uma abordagem
sobre o morrer de amor.
A mulher que tem voz
nos poemas, nunca fala no momento amoroso vivenciado, fruído. O seu discurso
fala da espera, da ausência, do temor, da solidão, da memória, do abandono,
nunca da relação amorosa presente e jubilosa. O amor na poesia de Maria do
Rosário habita o espaço da memória e é sempre exibido em sua incompletude ou
como metáfora de uma extrema perda. O discurso poético, depurado de
excrescências de sentimentalismo, revela um eu-lírico consciente de que o amor é
também a angústia da perda.
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