…SOU APENAS PESSOA
Como escrevo
em nome destes três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou
sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação
abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um
súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo
Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece
sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as
qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É
um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente
da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a
afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tenue à minha, é igual a
esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o
português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez
de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado...)
Sou…todos aqueles que nunca fui
e serei todos eles sem o
ser.
Sou apenas Pessoa.
FERNANDO PESSOA
in “Livro do Desassossego”
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