O que verdadeiramente nos mata,
o que torna esta conjuntura inquietadora, cheia de angústia, estrelada de luzes
negras, quase lutuosa, é a desconfiança. O povo, simples e bom, não confia nos
homens que hoje tão espectaculosamente estão meneando a púrpura de ministros;
os ministros não confiam no parlamento, apesar de o trazerem amaciado,
acalentado com todas as doces cantigas de empregos, rendosas conezias, pingues
sinecuras; os eleitores não confiam nos seus mandatários, porque lhes bradam em
vão: «Sede honrados», e vêem-nos apesar disso adormecidos no seio ministerial;
os homens da oposição não confiam uns nos outros e vão para o ataque, deitando
uns aos outros, combatentes amigos, um turvo olhar de ameaça. Esta desconfiança
perpétua leva à confusão e à indiferença. O estado de expectativa e de demora
cansa os espíritos. Não se pressentem soluções nem resultados definitivos:
grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras; o país, vendo os
mesmos homens pisarem o solo político, os mesmos ameaços de fisco, a mesma
gradativa decadência. A política, sem actos, sem factos, sem resultados, é
estéril e adormecedora.
Quando numa crise se protraem
as discussões, as análises reflectidas, as lentas cogitações, o povo não tem
garantias de melhoramento nem o país esperanças de salvação. Nós não somos
impacientes. Sabemos que o nosso estado financeiro não se resolve em bem da
pátria no espaço de quarenta horas. Sabemos que um deficit arreigado,
inoculado, que é um vício nacional, que foi criado em muitos anos, só em muitos
anos será destruído.
O que nos magoa é ver que só há
energia e actividade para aqueles actos que nos vão empobrecer e aniquilar; que
só há repouso, moleza, sono beatífico, para aquelas medidas fecundas que podiam
vir adoçar a aspereza do caminho.
Trata-se de votar impostos?
Todo o mundo se agita, os governos preparam relatórios longos, eruditos e de
aprimorada forma; os seus áulicos afiam a lâmina reluzente da sua argumentação
para cortar os obstáculos eriçados: as maiorias dispõem-se em concílios para
jurar a uniformidade servil do voto. Trata-se dum projecto de reforma
económica, duma despesa a eliminar, dum bom melhoramento a consolidar? Começam
as discussões, crescendo em sonoridade e em lentidão, começam as argumentações
arrastadas, frouxas, que se estendem por meses, que se prendem a todo o
incidente e a toda a sorte de explicação frívola, e duram assim uma eternidade
ministerial, imensas e diáfanas.
O país, que tem visto mil vezes
a repetição desta dolorosa comédia, está cansado: o poder anda num certo grupo
de homens privilegiados, que investiram aquele sacerdócio e que a ninguém mais
cedem as insígnias e o segredo dos oráculos. Repetimos as palavras que há pouco
Ricasoli dizia no parlamento italiano: «A pátria está fatigada de discussões
estéreis, da fraqueza dos governos, da perpétua mudança de pessoas e de
programas novos.»
Eça de Queirós,
in ‘Distrito de
Évora’
O pensamento de Eça de Queiroz (1845-1900)
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