O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente...
Hoje pela tarde, regressada a casa da dura e dolorosa tarefa de me despedir para sempre de alguém muito querido e vencida pelo cansaço espiritual, abri o computador. Fui surpreendida pelo Google, que me recordava o facto de o dia de hoje assinalar o 123.º aniversário de Fernando Pessoa.
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Fernando Pessoa aos 6 anos de idade |
À minha mente acudiram, de imediato, as palavras com que iniciei esta mensagem...E tantas outras mais, que não caberiam num blogue inteiro. Mesmo assim, numa tentativa de não me alongar muito e de me não tornar cansativa, aventuro-me a recordar um pouco de Fernando António Nogueira Pessoa, o nosso Fernando Pessoa, e a sua obra literária.
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Casa onde Fernando Pessoa nasceu, no Largo S.Carlos,
em Lisboa
Nascido em Lisboa a 23 de Junho de 1888, numa casa do Largo de São Carlos, aos cinco anos assistiu à morte do pai, vítima de tuberculose, e no ano seguinte, à do irmão, Jorge. Devido ao segundo casamento da mãe, em 1896, com o cônsul português em Durban, na África do Sul, seguiu os estudos secundários neste neste país, por um período de dez anos.
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Padrasto e mãe de Fernando Pessoa |
Terminou este período em que fez a sua preparação universitária, com a frequência de uma escola comercial, a Durban High School e o Iintermediate Examinatin in Arts, onde obteve o "Queen Victoria Memorial Prize", pelo melhor ensaio de estilo inglês. De regresso definitivo a Lisboa, 1905, frequentou, por um período breve, o Curso Superior de Letras. Após uma tentativa falhada para montar a sua própria tipografia e editora, dedicou-se, a partir de 1908 à tradução de correspondência estrangeira, facto que lhe permitiu tempo para se dedicar ao estudo da filosofia grega e alemã, à escrita, ciências humanas e políticas, teosofia e literatura moderna, determinantes na sua personalidade.
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Pessoa nas ruas de Lisboa |
Em 1920, ano em que a mãe, viúva, regressou a Portugal com os irmãos e em que Fernando Pessoa foi de novo viver com a família, iniciou uma relação sentimental com Ophélia Queiroz (interrompida nesse mesmo ano e retomada, para rápida e definitivamente terminar, em 1929) testemunhada pelas cartas de amor de Pessoa, organizadas e anotadas por David Mourão Ferreira, e editadas em 1978. Em 1925, ocorreria a morte da mãe. Fernando Pessoa viria a morrer uma década depois, a 30 de Novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses, onde foi internado com uma cólica hepática, causada provavelmente pelo consumo excessivo de álcool.
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Carta de Pessoa dirigida a Adolfo Casais
Monteiro |
Levando uma vida relativamente apagada, movimentando-se num círculo restrito de amigos que frequentavam as tertúlias intelectuais dos cafés da capital, envolveu-se nas discussões literárias e até políticas da época.Colaborou na revista A Águia da Renascença Portuguesa, com artigos de crítica literária sobre a nova poesia portuguesa, imbuídos de um sebastianismo animado pela crença no surgimento de um grande poeta nacional, o "super-Camões" (ele-próprio?). Data de 1913 a publicação do "Impressões do Crepúsculo" (poema tomado como exemplo de uma nova corrente, o paúlismo, designação advinda da primeira palavra do poema) e de 1914 o aparecimento dos seus três principais heterónimos, segundo indicação do próprio Fernando Pessoa, em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a origem destes.
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Fernando Pessoa e o mago Aleister Crowley, em Lisboa,
em 1930 |
Em 1915, com Mário de Sá-Carneiro (seu dileto amigo, com o qual trocou intensa correspondência e cujas crises acompanhou de perto), Luís Montalvor e outros poetas e artistas plásticos, formou o grupo "Orpheu", grupo que lançou a revista Orpheu, marco do modernismo português e onde publicou, desde o primeiro número, a diversa poesia do seu heterónimo Campos e do próprio ortónimo Pessoa. Além de diversos sonetos e poemas da sua poesia inglesa, concorreu em 1934, com Mensagem, a um prémio da Secretaria de Propaganda Nacional, que conquistou na categoria B, devido à reduzida extensão do livro. Colaborou nas revistas Exílio, Portugal Futurista, Contemporânea, Athena e Presença.
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Última residência do poeta e actual Casa de
Fernando Pessoa |
A sua obra, que permaneceu maioritariamente inédita, foi difundida e valorizada pelo grupo Presença. A partir de 1943, Luís Montalvor deu início à edição completa das obras de Fernando Pessoa, englobando os seus heterónimos e o próprio ortónimo, Fernando Pessoa. Do seu vasto espólio, foram também retirados o Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, e uma série de outros textos.
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Edição de "Mensagem" de 1934 |
A questão humana dos heterónimos, tanto ou mais do que a questão literária, tem atraído as atenções. Concebidos como individualidades distintas do autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios. Encontrando-se ligados a alguns problemas centrais da sua obra, traduzem a fragmentação do "eu", reduzindo o "eu" real de Pessoa a um papel que não é maior do que o dos seus heterónimos, na existência literária do poeta. Deles se destacam três:
- Álvaro de Campos, engenheiro português de educação inglesa. Influenciado pelo simbolismo e futurismo, apresentava um certo niilismo nas suas obras. Viria a assimilar com
- Ricardo Reis, nascido no Porto em 1887, médico que escrevia as suas obras com simetria e harmonia. O bucolismo estava presente nas suas poesias. Era um defensor da monarquia e demonstrava grande interesse pela cultura latina.
- Alberto Caeiro, nascido em Lisboa em 1885, aí morreu. Era o Mestre, inclusive do próprio Fernando Pessoa ortónimo. Com uma formação educacional simples (apenas o primário), este heterónimo fazia poesias de forma simples, direta e concreta. As suas obras estão reunidas nos Poemas Completos de Alberto Caeiro.
Apenas dois poemas do próprio Fernando Pessoa, tão conhecidos, e retirados de "Mensagem":
Ó mar salgado, quanto do teu sal,
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
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Ai que prazer
Não cumprir um dever
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...