CONTA COMIGO SEMPRE
Conta comigo sempre.
Desde a sílaba inicial até à última gota de sangue. Venho do silêncio incerto
do poema e sou, umas vezes constelação e outras vezes árvore, tantas vezes
equilíbrio, outras tantas tempestade. A nossa memória é um mistério, recordo-me
de uma música maravilhosa que nunca ouvi, na qual consigo distinguir com
clareza as flautas, os violinos, o oboé.
O sonho é, e será
sempre e apenas, dos vivos, dos que mastigam o pão amadurecido da dúvida e a
carne deslumbrada das pupilas. Estou entre vazios e plenitudes, encho as mãos
com uma fragilidade que é um pássaro sábio e distraído que se aninha no coração
e se alimenta de amor, esse amor acima do desejo, bem acima do sofrimento.
Conta comigo sempre.
Piso as mesmas pedras que tu pisas, ergo-me da face da mesma moeda em que te
reconheço, contigo quero festejar dias antigos e os dias que hão-de vir,
contigo repartirei também a minha fome mas, e sobretudo, repartirei até o que é
indivisível.
Tu sabes onde estou.
Sabes como me chamo.
Estarei presente quando
já mais ninguém estiver contigo, quando chegar a hora decisiva e não
encontrares mais esperança, quando a tua antiga coragem vacilar. Caminharei a
teu lado. Haverá, decerto, algumas flores derrubadas, mas haverá igualmente um
sol limpo que interrogará as tuas mãos e que te ajudará a encontrar, entre as
respostas possíveis, as mais humildes, quero eu dizer, as mais sábias e as mais
livres.
Conta comigo. Sempre.
JOAQUIM PESSOA,
in
“Ano Comum”
Voz: José-António Moreira
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