Mergulha-se em angústias lacrimosas
Nos ermos de um castelo abandonado,
e as próximas florestas tenebrosas
Repercutem um choro amargurado.
Uníssemos, nós dois, as nossas covas,
Ó doce castelã das minhas trovas!
´
Poeta português, natural de
Caneças, Loures, oriundo de uma família burguesa abastada. O pai era lavrador
(tinha uma quinta em Linda-a-Pastora) e comerciante (estabelecido com uma
loja de ferragens na baixa lisboeta). Foi por essas duas actividades
práticas, úteis, de acordo com a visão do mundo do próprio Cesário Verde, que
se repartiu a vida do poeta.
Paralelamente, ia alimentando o seu gosto pela
leitura e pela criação literária, embora longe dos meios literários oficiais
com que nunca se deu bem, o que o levou, por exemplo, a abandonar o Curso
Superior de Letras da Faculdade de Letras de Lisboa, que frequentou entre
1873 e 1874.
Cesário Verde estreou-se, nessa altura, colaborando nos jornais
Diário de Notícias, Diário da Tarde, A Tribuna e Renascença. A partir de 1875
produziu alguns dos seus melhores poemas: «Num Bairro Moderno» (1877), «Em
Petiz» (1878) e «O Sentimento dum Ocidental» (1880). Este último foi escrito
por ocasião do terceiro centenário da morte de Camões e é, ainda hoje, um dos
textos mais conhecidos do poeta, embora mal recebido pela crítica de então,
numa incompreensão geral mesmo por parte de escritores da Geração de 70, de
quem Cesário Verde esperaria aceitação para a sua poesia.
A falta de estímulo da crítica e um certo mal-estar relativamente ao meio
literário, expressos, por exemplo, no poema «Contrariedades» (Março de 1876),
fazem com que Cesário Verde deixe de publicar em jornais, surgindo apenas, em
1884, o poema «Nós». O binómio cidade-campo surge como tema principal neste
longo poema narrativo autobiográfico, onde o poeta evoca a morte de uma irmã
( 1872) e de um irmão (1882), ambos de tuberculose, doença que viria a
vitimar igualmente o poeta, apesar das várias tentativas de convalescença
numa quinta no Lumiar.
Só em 1887 foi organizada, postumamente, por
iniciativa do seu amigo Silva Pinto, uma compilação dos seus poemas, a que
deu o nome de O Livro de Cesário Verde (à disposição do público em geral
apenas em 1901). Dividida em duas secções, Crise Romanesca e Naturais, o
livro não seguiu qualquer critério cronológico de elaboração ou de
publicação. Entretanto, novas edições vieram acrescentar alguns textos à obra
conhecida do poeta e organizá-la segundo critérios mais rigorosos.
Formado dentro dos moldes do realismo e do parnasianismo literários, Cesário Verde afirmou-se sobretudo pela sua oposição ao lirismo tradicional. Em poemas por vezes cínicos ou humorísticos (na linha de A Folha, de João Penha, ou de Baudelaire, de que se reconhece a influência sobretudo no tratamento da temática da cidade, do amor e da mulher) conseguiu manter-se alheio ao peso da «literatura», procurando um tom natural que valorizasse a linguagem do concreto e do coloquial, por vezes até com cariz técnico, marcando um desejo de autenticidade e um amor pelo real, que fez com que a sua poesia enfrentasse, por vezes, a acusação de prosaísmo.
Com uma visão extremamente
plástica do mundo, deteve-se em deambulações pela cidade ou pelo campo (seus
cenários de eleição) transmitindo o que aí era oferecido aos sentidos, em
cores, formas e sons, de acordo com a fórmula do próprio poeta, expressa em
carta ao seu amigo Silva Pinto: «A mim o que me rodeia é o que me preocupa».
Se, por um lado, exaltava os valores viris e vigorosos, saudáveis, da vida do
campo e dos seus trabalhadores, sem visões bucólicas, detinha-se, por outro,
na cidade, na sedução dos movimentos humanos, da sua vibração, solidarizando-se
com as vítimas de injustiças sociais e integrando na sua poesia, por vezes,
um desejo de evasão.
Conhecido como o poeta da cidade de Lisboa, foi
igualmente o poeta da Natureza anti-literária, numa antecipação de Fernando
Pessoa/Alberto Caeiro, que considerava Cesário um dos vultos fundamentais da
nossa história literária.
Através de processos impressionistas, de grande sugestividade (condensando e combinando, por exemplo, sensações físicas e morais num só elemento), levou a cabo uma renovação ímpar, no século XIX, da estilística poética portuguesa, abrindo caminho ao modernismo e influenciando decisivamente poetas posteriores. |
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POEMAS DE CESÁRIO VERDE:
De tarde Manias
Naquele «pic-nic» de burguesas, O mundo é velha cena ensanguentada.
Houve uma coisa simplesmente bela, Coberto de remendos, picaresca;
E que, sem ter histórias nem grandezas, A vida é chula, farsa assobiada,
Em todo o caso dava uma aguarela. Ou selvagem tragédia romanesca.
Foi quando tu, descendo do burrico, Eu sei um bom rapaz -hoje uma ossada-,
Foste colher, sem imposturas tolas, Que amava certa dama pedantesca,
A um granzoal de grão-de-bico Perversíssima, esquálida, e chagada,
Um ramalhete rubro de papoulas. Mas cheia de jactância quixotesca.
Pouco depois, em cima de uns penhascos, Aos domingos a déia, já rugosa,
Nós acampámos, inda o sol se via; Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E houve talhadas de melão, damascos, E o dengue, em atitude receosa,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro, a sair da renda Na sujeição mais submissa,
Dos teus dois seios como duas rolas, Levava na tremente mão nervosa,
Era o supremo encanto da merenda O livro com que a amante ia ouvir missa!
O ramalhete rubro das papoulas.
Dos teus dois seios como duas rolas, Levava na tremente mão nervosa,
Era o supremo encanto da merenda O livro com que a amante ia ouvir missa!
O ramalhete rubro das papoulas.
Heroísmos Deslumbramentos
Eu temo muito o mar, o mar enorme, Milady, é perigoso comtemplá-la,
Solene, enraivecido, turbulento, Quando passa aromática e normal,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento; Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
O mar sublime, o mar que nunca dorme. Com seus gestos de neve e de metal.
Eu temo o largo mar, rebelde, informe, Sem que nisso desgoste ou desenfade,
De vítimas famélico, sedento, Quantas vezes, seguindo~lhe as passadas,
E creio ouvir em cada seu lamento Eu vejo-a, com real solenidade,
Os ruídos de um túmulo disforme. Ir impondo toilettes complicadas!...
Contudo, num barquinho transparente, Em si tudo me atrai como um tesouro:
No seu dorso feroz vou blasonar, O seu ar pensativo e senhoril,
Tufada a vela e n'água quase assente, A sua voz que tem um timbre de ouro
E ouvindo muito perto o seu bramar, E o seu nevado e lúcido perfil!
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente, Ah! Como me estonteia e e me fascina...
Escarro, com desdém, no grande mar! E é na graça distinta do seu porte,
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo como um regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhes as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana da Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!
Eu ontem encontrei-a quando vinha,
Britânica e fazendo-me assombrar;
Grande fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo como um regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhes as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana da Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
Cesário Verde
Mário Viegas recita Cesário Verde:
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