NÃO SEI COMO
DIZER-TE
Não sei como dizer-te que
minha voz te procura
e a atenção começa a
florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer,
quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho
precioso
e estremeces como um
pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o
centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um
tempo distante,
e na terra crescida os
homens entoam a vindima
— eu não sei como
dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te
procuram.
Quando as folhas da
melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente
inventada
em seu escuro fundo e em
seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos
da minha solidão
como se toda a casa
ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que
dizer
junto à taça de pedra do
teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças
acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham
no meio do tempo
— não sei como dizer-te
que a pureza,
dentro de mim, te
procura.
Durante a primavera
inteira aprendo
os trevos, a água
sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer
algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai
da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto
que me faltam
um girassol, uma pedra,
uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como
dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o
sol, o fruto,
a criança, a água, o
deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
Aquele que era o maior poeta português vivo deixou a vida nesta manhã de segunda-feira, aos 84 anos, mas a sua obra permanecerá.
O seu
último livro, "A Morte Sem Mestre", foi publicado no ano passado.
Distinguido em 1994 com o Prémio Pessoa, recusou recebê-lo. "Não digam a
ninguém e deem o prémio a outro", pediu ao júri.
Descanse em paz.
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