quarta-feira, março 25, 2015

ESTA NOITE, ÚLTIMA HOMENAGEM AO GRANDE POETA HERBERTO HELDER (1930-2015): " NÃO SEI COMO DIZER-TE "




NÃO SEI COMO DIZER-TE


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
 que te procuram.



Aquele que era o maior poeta português vivo deixou a vida nesta manhã de segunda-feira, aos 84 anos, mas a sua obra permanecerá. 

O seu último livro, "A Morte Sem Mestre", foi publicado no ano passado. Distinguido em 1994 com o Prémio Pessoa, recusou recebê-lo. "Não digam a ninguém e deem o prémio a outro", pediu ao júri.

Descanse em paz.




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